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Pall Mall Process propõe novo marco internacional contra o uso de spywares

Por Vinícius Silva e Rafael Zanatta
O uso abusivo de tecnologias de vigilância por governos têm se intensificado nos últimos anos, ameaçando liberdades fundamentais em democracias. Em resposta a essa crise silenciosa, o Pall Mall Process, uma iniciativa internacional liderada pelo Reino Unido e pela França, deu um passo significativo ao lançar um Código de Práticas para o uso responsável de ferramentas de espionagem, como os spywares.
Lançado em abril de 2024, o código foi inicialmente assinado por 25 membros, incluindo os Estados Unidos da América e a União Africana, e representa uma tentativa inédita de regular politicamente a indústria global de vigilância digital. A proposta estabelece diretrizes éticas para a aquisição e o uso dessas tecnologias, recomendando medidas concretas de responsabilização contra indivíduos, empresas e governos que violam direitos fundamentais por meio dessas ferramentas intrusivas.
Embora o Código de Práticas represente um avanço, especialistas e organizações alertam que seu impacto dependerá inteiramente da implementação efetiva e da pressão pública. O documento não obriga juridicamente os países signatários a adotarem as diretrizes. Isso significa que, sem a pressão ativa por parte da sociedade civil, as promessas do Pall Mall Process podem se transformar em gestos diplomáticos vazios.
Paralelamente ao avanço do Pall Mall Process, a Freedom House lançou uma ferramenta de denúncia pública contra o uso abusivo de spyware, baseada em um modelo padronizado que permite à sociedade civil reportar casos diretamente às autoridades dos EUA. A ferramenta complementa os esforços do Pall Mall, funcionando como um canal direto para a responsabilização de atores envolvidos em vigilância ilegal e repressiva.
A proposta é facilitar o envio dessas informações a órgãos reguladores, como os Departamento de Estado, Comércio e Tesoura, de modo que eles possam aplicar sanções, impor restrições de viagem ou outras formas de responsabilização a indivíduos e empresas envolvidas.
A iniciativa busca também fomentar a criação de um repositório coletivo de denúncias e relatos documentados, o que pode servir como base para futuras ações legais ou campanhas internacionais de incidência. A Freedom House reforça que o sucesso desta ferramenta depende da participação ativa e coordenada de organizações da sociedade civil em diferentes países.
Em Taiwan, na RightsCon, a Data Privacy Brasil participou de uma série de painéis sobre spywares e foi convidada a colaborar com uma rede de entidades civis especializadas que estão em diálogo com os governos da França e do Reino Unido para revisão e implementação do Pall Mall Process.
Contribuições da Data Privacy Brasil: mais do que vigilância estatal, uma violência estrutural
A Data Privacy Brasil, por meio do projeto Iniciativa de Defesa Digital, realizado em parceria com o InternetLab, participou dos diálogos internacionais sobre o Pall Mall Process e a ferramenta produzida pela Freedom House, apresentando uma série de propostas para que o Código de Práticas e outras ferramentas associadas ganhem força prática e sensibilidade social. As principais sugestões foram:
- Considerar as violências de gênero na vigilância
A organização alertou para o uso de tecnologias como o stalkerware, frequentemente promovidas como ferramentas de controle parental, mas amplamente utilizadas para monitoramento abusivo em relações íntimas, especialmente por homens contra parceiras e ex-parceiras. Essa vigilância de proximidade representa uma forma de violência de gênero invisibilizada (como tem sido alertado por organizações como o IRIS, que recebe apoio do nosso programa Malhas Digitais), que precisa ser considerada em qualquer proposta regulatória.
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Transformar a documentação em ação coletiva
Reconhecendo os limites jurídicos e políticos atuais para responsabilização, a Data propôs que a estrutura do modelo de denúncia associado ao Pall Mall Process sirva como base para um repositório coletivo e global de casos documentados, construído por organizações da sociedade civil. Tal arquivo poderia fortalecer ações futuras de advocacy e litígios estratégicos.
- Humanização na inclusão do apoio psicossocial às vítimas
A proposta também enfatiza a centralidade das vítimas, qualquer instrumento de denúncia deve conter uma seção visível com informações sobre acesso a serviços de apoio psicológico e social especializado, garantindo cuidado humano no momento inicial da denúncia e não apenas a busca por punições legais. Organizações como SocialTIC e Fundación Acesso, na América Latina, possuem grande experiência em concepções holísticas de atendimento humanizado e psicossocial às vítimas.
- Mapeamento global da indústria da vigilância
A Data Privacy Brasil sugere colaborar com o mapeamento das cadeias internacionais de produção, comercialização e uso de tecnologias de vigilância. A proposta é identificar empresas, contratos e fluxos transnacionais, articulando uma compreensão estratégica da indústria de spyware que possa servir de base para campanhas internacionais de regulação e responsabilização.
Além das articulações com entidades do Norte Global, a Data Privacy Brasil tem levado a temática dos spywares para dentro de articulações da Aliança do Sul Global e reuniões com parceiros da região africana. O compromisso dos Estados de combate aos spywares é fundamental para a garantia do jornalismo e do trabalho de entidades civis. Há um número crescente de denúncias de usos abusivos de spywares, como ocorrido no Brasil, com o First Mile, ou na Itália, com a perseguição de jornalistas que trabalham com imigrantes.
A luta contra o uso abusivo de tecnologias de vigilância não será vencida apenas com compromissos diplomáticos, que são bem-vindos e necessários. O Brasil deve considerar a adesão, considerando que a ilicitude dos spywares está sendo discutida no Supremo Tribunal Federal. A efetividade do Pall Mall Process dependerá da capacidade da sociedade civil de transformar diretrizes em exigências concretas, documentar abusos, acolher vítimas e enfrentar o poder político e econômico das empresas envolvidas.
Os spywares são instrumentos de violência, controle social e silenciamento. Enfrentá-los exige articulação internacional, sensibilidade social e, sobretudo, ação coordenada da sociedade civil. A Data Privacy Brasil reforça o seu compromisso no combate às assimetrias tecnoautoritárias.
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