Notícia | IA e datificação da segurança pública: construindo redes para proteção de direitos fundamentais | Assimetrias e Poder

Um primeiro passo na regulação do uso de tecnologias na segurança pública

 Um primeiro passo na regulação do uso de tecnologias na segurança pública

Por Vinicius Silva e Pedro Saliba

No dia 24 de junho de 2025, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), publicou a Portaria nº 961/2025, que estabelece diretrizes para o uso de tecnologias da informação em atividades de investigação criminal e inteligência na segurança pública. A medida surge em um contexto de crescente preocupação com o uso indiscriminado de sistemas digitais pelas forças de segurança e representa um importante marco normativo, ainda que inicial, no fortalecimento de garantias constitucionais frente ao avanço tecnológico no setor.

A Portaria é direcionada principalmente aos órgãos federais de segurança pública, como Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Força Nacional, mas também alcança Estados e Municípios em iniciativas que envolvam recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) e do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN). Isso significa que qualquer ente federativo que utilize recursos federais para adquirir ou operar sistemas, como câmeras corporais, plataformas de interoperabilidade ou sistemas de reconhecimento facial, deverá seguir os parâmetros da norma.

Diretrizes, objetivos e definições

A norma é construída sobre princípios fundamentais como respeito aos direitos fundamentais, proteção de dados pessoais, legalidade, proporcionalidade, devido processo legal, transparência e prestação de contas. Seu objetivo é orientar a adoção de tecnologias digitais na segurança pública dentro de limites jurídicos e éticos, buscando evitar abusos, garantir a integridade das provas e preservar a privacidade dos cidadãos.

A Portaria apresenta algumas definições em diálogo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), como o que se entende por dado pessoal, dado sensível, dado sigiloso, investigação criminal e inteligência de segurança pública, delimitando em que condições essas tecnologias podem ser usadas.

Em relação ao acesso a dados sigilosos, por exemplo, ela exige decisão judicial específica, vinculação clara a um procedimento investigativo e registro detalhado dos dados acessados. Dados de terceiros não relacionados à investigação ou informações obtidas fora do período autorizado devem ser descartados sempre que possível.

Regulação do uso de inteligência artificial

O texto também aborda o uso de inteligência artificial (IA), observando que os sistemas devem ser aplicados com proporcionalidade, prevenção de riscos e revisão humana sempre que houver possibilidade de afetar direitos fundamentais. Um dos pontos mais relevantes é a vedação ao uso de identificação biométrica à distância, em tempo real, em espaços públicos, salvo em hipóteses restritas como flagrante delito, busca de desaparecidos ou cumprimento de mandados.

A Portaria impõe obrigações aos órgãos gestores, como controle de acesso com autenticação forte, revisão periódica de perfis de usuário, planos de contingência, monitoramento de uso indevido e realização de auditorias. Além disso, todos os acessos devem ser registrados em log, com dados do usuário, IP, data, hora e natureza da operação.

Essas medidas são relevantes não só para garantir segurança e integridade das informações, mas também para permitir eventual responsabilização em caso de abuso ou desvio de finalidade, um ponto sensível à luz das denúncias envolvendo sistemas como o Córtex e o First Mile, que vinham operando sem transparência e controle.

Avanços e próximos passos

Apesar dos avanços, a Portaria ainda está longe de resolver os principais problemas relacionados à efetividade da regulação do uso de tecnologias na segurança pública. Por um lado, o texto é bem vindo, por exigir prestação de contas de quem recebe recursos federais, por introduzir parâmetros técnicos e jurídicos importantes e por reconhecer os riscos da vigilância algorítmica. Por outro lado, ele não cria mecanismos robustos de fiscalização nem institui órgãos independentes de controle. Falta, também, transparência ativa sobre o uso dos sistemas, algo essencial para controle social e institucional em um tema tão sensível à democracia.

Outro ponto relevante é que a Portaria não se aplica a Estados e Municípios que usam recursos próprios para contratação de tecnologias, como é o caso de entes federativos com orçamento robusto, como São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo. Nesses contextos, permanece a lacuna legal sobre o uso de sistemas de vigilância e inteligência artificial, o que reforça a urgência da aprovação de uma LGPD Penal. O anteprojeto dessa lei está parado no Congresso Nacional há anos, sem sequer contar com relatoria, mesmo sendo essencial para assegurar direitos e garantir segurança jurídica a contratações e operações locais.

A parte dedicada à IA na Portaria também traz uma boa contribuição ao debate. Há um contraste visível com o atual texto do PL 2338/2023, marco regulatório da IA, que ainda prevê brechas para o uso de IA em segurança pública e inteligência sem controles adequados, o que poderia levar à legitimação de práticas de alto risco. A abordagem do MJSP, nesse sentido, é mais cautelosa e alinhada com recomendações internacionais.

Por uma agenda de governança de dados na segurança pública

A Portaria nº 961/2025 é um primeiro passo importante para a criação de um marco regulatório sobre tecnologias de vigilância, investigação e inteligência no Brasil. Ao vincular o uso de soluções de TI ao respeito a direitos fundamentais e exigir parâmetros mínimos para seu funcionamento, o Ministério da Justiça dá um sinal positivo de que está atento à complexidade e à relevância do tema.

No entanto, a efetividade dessa norma dependerá da capacidade de implementá-la com transparência e fiscalização. O controle do uso de tecnologias como o Córtex e outras ferramentas intrusivas continuará desafiador sem o fortalecimento institucional de órgãos como o próprio MJSP e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). A aprovação de legislações específicas, como a LGPD Penal, e o avanço no julgamento da ADPF 1143 pelo Supremo Tribunal Federal também serão cruciais para consolidar um ambiente jurídico que proteja a população e limite abusos estatais no uso de tecnologias.