Inteligência Artificial, Sustentabilidade e Direito Coletivo de Acesso à Informação
Existem grandes questionamentos relacionados ao desenvolvimento e uso da IA, quando avaliados os impactos socioambientais que esta produz ao longo de todo o seu ciclo de vida. Essa discussão abre o primeiro eixo temático do projeto IA com Direitos - dedicado a desenvolver uma maior conscientização sobre a importância de uma regulação de Inteligência Artificial no Brasil centrada em cidadania e direitos.
Desafios Socioambientais da Inteligência Artificial
Existem grandes questionamentos relacionados ao desenvolvimento e uso da IA, quando avaliados os impactos socioambientais que esta produz ao longo de todo o seu ciclo de vida. O alto consumo de energia, água e recursos minerais por data centers, a mineração predatória para hardware, a descomunal produção de lixo eletrônico, e o risco de ocupação de territórios indígenas e quilombolas levantam sérias questões sobre os custos socioambientais desta tecnologia.
Na nota técnica “Artificial intelligence (AI) end-to-end: The environmental impact of the full AI life cycle needs to be comprehensively assessed¹” o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) alerta para os impactos socioambientais significativos da IA ao longo de todo seu ciclo de vida, especialmente quanto ao aumento do consumo de energia, água e recursos minerais para sustentar sua infraestrutura, como data centers e hardwares especializados, mas também alerta para os potenciais impactos indiretos (como o aumento do uso de veículos autônomos) e efeitos sistêmicos mais amplos, como mudanças nos padrões de consumo e disseminação de desinformação sobre mudanças climáticas.
Além disso, o desenvolvimento e manutenção de infraestrutura para o funcionamento de IA também tem implicações para o urbanismo, afetando os padrões de ocupação do território e dos recursos naturais, inclusive comprometendo a capacidade de oferta para a população.
Justamente pela gravidade dos impactos que esse tipo de instalação gera que a transparência sobre a atividade de datacenters, em especial o uso de recursos, é essencial. Casos como o do data center da Google, em Dalles, Oregon, em que a empresa alegou que este tipo de informação seria segredo industrial, não podem se repetir. Considerando que haviam acordos de benefícios fiscais para incentivar o empreendimento, o dever de transparência é ainda mais evidente.
Direito coletivo de acesso à Informação como Pilar para a Sustentabilidade da IA
Diante desse cenário, torna-se essencial garantir o direito coletivo de acesso à informação pública, atuando como um pilar fundamental para a promoção da justiça socioambiental e tecnológica.
No Brasil, o acesso à informação é reconhecido e resguardado como um dos direitos coletivos listados no capítulo I da Constituição Federal de 1988, e regulamentado pela Lei de Acesso à Informação (LAI), e reforçado pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Ele assegura que indivíduos e organizações — incluindo empresas, movimentos sociais e entidades de pesquisa — possam acessar dados de interesse público, viabilizando o controle social e a responsabilização de agentes públicos e privados.
Assim como o direito à proteção de dados pessoais (conforme a LGPD), o acesso à informação é condição para a efetivação de outros direitos fundamentais, como saúde, educação e meio ambiente ecologicamente equilibrado. Portanto, sua efetiva implementação é indispensável para o desenvolvimento de uma IA verdadeiramente sustentável, baseada em: justiça social e climática; proteção de comunidades vulneráveis; redução de desigualdades regionais; e crescimento econômico responsável; e em alinhamento regulatório com os direitos fundamentais, o ordenamento jurídico nacional e os padrões internacionais.
Frente à gravidade dos impactos sócio-ambientais da IA, é urgente estabelecer métodos padronizados de medição e avaliação de impactos, além de políticas públicas eficazes e práticas regulatórias que levem em consideração a mitigação dos riscos sócio-ambientais da tecnologia de IA. Isso inclui a priorização de indicadores transparentes sobre consumo hídrico, energético, emissões e descarte de resíduos.
A Importância da Transparência Pública e Privada
A efetividade da política dependerá de governança democrática que garanta transparência e participação ativa da academia, sociedade civil e comunidades afetadas. É necessário corrigir a ausência do direito coletivo à informação, conforme a LAI, LGPD e Acordo de Escazú e estimular a governança e proteção de dados, alinhada à LGPD e a padrões internacionais, assegurando confiabilidade e competitividade. A integração dessas áreas fortalece tanto a infraestrutura digital quanto a posição estratégica do Brasil no cenário global.
A transparência, tanto ativa quanto passiva, é condição essencial para garantir que os impactos ambientais e sociais das tecnologias de IA sejam conhecidos e auditáveis. Tal exigência deve se estender não apenas a entes públicos, mas também a empresas privadas com fins lucrativos, especialmente quando recebem benefícios fiscais ou atuam sobre recursos naturais de uso comum, como a água.
São exemplos de dados de interesse público que devem ser divulgados: consumo de energia e água; emissões de carbono; contratos de fornecimento (PPAs); relatórios de impacto ambiental; uso e descarte de resíduos; localização de data centers e seus impactos urbanos.
Esses dados, por seu caráter público, devem ser acessíveis à sociedade civil, comunidades afetadas, pesquisadores e organizações de defesa de direitos coletivos. A divulgação dessas informações reduz assimetrias de poder, fortalece o controle social e qualifica a participação cidadã. Além disso, entidades que possuem, em seus estatutos, a competência para defesa de direitos coletivos e difusos têm legitimidade ativa para aceder a informações em função do interesse legítimo.
A ausência de exigências formais de transparência para as empresas, aliada à ausência de mecanismos eficazes de acesso à informação por parte do Estado, enfraquece as condições para a atuação plena do ativismo da sociedade civil e o controle social sobre iniciativas que impactam o interesse público.
Incentivos Fiscais e Responsabilidade Socioambiental
Empreendimentos tecnológicos que recebem incentivos fiscais devem, em contrapartida, assumir compromissos concretos com a transparência e a responsabilidade socioambiental. A justificativa de que responder a pedidos de informação representa um “desvio de recursos significativos” deve ser relativizada diante do uso de recursos públicos e do impacto gerado sobre o interesse coletivo.
O investimento público e privado em infraestrutura digital precisa estar vinculado a garantias reais de auditoria, rastreabilidade e efetividade das tecnologias adotadas, assegurando que as tecnologias adotadas cumpram, de fato, as promessas de sustentabilidade e eficiência. A clareza e a publicidade de informações ambientais fortalecem a segurança jurídica para investidores, ao mesmo tempo em que permitem que a sociedade verifique os efeitos reais das tecnologias implementadas. Sem isso, há o risco de concessões fiscais sem contrapartidas, aumento das desigualdades regionais e uso indevido de recursos públicos. A falta desses mecanismos pode gerar disputas entre entes federativos, alocação ineficiente de recursos e impactos negativos não mensurados sobre o território.
Para garantir segurança nos investimentos no setor, é necessário adotar medidas de transparência adequadas para que investimentos públicos e privados sejam auditáveis. Diante do interesse econômico nas fontes de energia renováveis do Brasil, além de suas políticas de digitalização e competência técnica, há o risco de empresas se instalarem em territórios afirmando seguirem medidas de sustentabilidade, sem, no entanto, cumprirem o discurso adotado. A adoção de medidas de transparência garante um ambiente de investimento público e privado mais seguro, uma vez que permite verificar a efetividade das tecnologias adotadas, assim como os impactos urbanos, sociais, ambientais e econômicos em determinado território.
Conclusão: Centralidade da Transparência e Controle Social
O fortalecimento do direito coletivo à informação e da governança participativa é essencial para que o avanço da inteligência artificial ocorra de forma ética, justa e sustentável. Os impactos dos data centers não são homogêneos: tendem a agravar desigualdades e afetar de forma desproporcional populações já vulnerabilizadas.
A adoção de políticas públicas transparentes, com participação social qualificada e mecanismos efetivos de controle e responsabilização, é o caminho para alinhar a IA aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, aos direitos fundamentais previstos em sua Constituição e às demandas por um futuro digital que respeite os limites do planeta.
Garantias de que a política está, de fato, submetida ao escrutínio público, que é possível a responsabilização caso irregularidades ocorram. As questões socioambientais que envolvem a implementação de Data Centers, são questões de evidente interesse público, pelo impacto sobre o ambiente, as populações, e as gerações futuras, mas também porque recursos públicos como a água, são bens comum na legislação brasileira, portanto se torna indispensáveis mecanismos de controle social tanto das ações públicas quanto das atividades privadas.
¹ United Nations Environment Programme, Artificial Intelligence (AI) end-to-end: The Environmental Impact of the Full AI Lifecycle Needs to be Comprehensively Assessed – Issue Note, setembro de 2024, https://wedocs.unep.org/20.500.11822/46288.
Veja também
-
Caminhos para a regulação de IA no Brasil
Nos últimos meses, a Data Privacy Brasil reuniu seu time de pesquisa para refletir sobre mudanças possíveis no texto do Projeto de Lei 2338/23, que define princípios, direitos e regras de governança para sistemas de Inteligência Artificial (IA) no Brasil.
-
Proteção de dados e transparência pública em prol de políticas ambientais
Decisão da 9ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Justiça Federal do Pará garante abertura de dados da Guia de Trânsito Animal no estado.
-
Governança da IA de baixo para cima
Nos dias 25 e 26/09/25, participamos do evento “Workers Governing Technologies Workshop”, promovido pelo grupo de pesquisa Creative Labour and Creative Futures na Universidade de Toronto no Canadá.
-
A transformação da ANPD: de Autoridade à Agência Nacional de Proteção de Dados
A ANPD encontra-se em um momento decisivo de consolidação institucional, marcado por mudanças normativas e estruturais que reforçam sua posição como órgão regulador central no ecossistema de proteção de dados brasileiro.
-
Já é Carnaval, meu amor, proteja-se!
O Carnaval do Brasil é mundialmente conhecido, seja pela tradição do samba na avenida ou pela imensidão dos blocos de rua. Na euforia dos blocos, muitas vezes encontramos um problema crítico: danos causados a pessoas que tiveram celulares furtados ou roubados, com invasões de contas, redes sociais e aplicativos de mensageria. Confira as dicas para você curtir com segurança!
-
O que está por trás do CPF nas farmácias?
4 conteúdos para você se aprofundar na relação entre dados e farmácias
-
Contribuição para audiência pública sobre aspectos concorrenciais dos ecossistemas digitais
Contribuição da Data Privacy Brasil para a audiência pública do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) sobre os aspectos concorrenciais dos ecossistemas digitais de sistemas operacionais móveis, realizada no dia 19 de fevereiro de 2025.
Veja Também
-
Caminhos para a regulação de IA no Brasil
Nos últimos meses, a Data Privacy Brasil reuniu seu time de pesquisa para refletir sobre mudanças possíveis no texto do Projeto de Lei 2338/23, que define princípios, direitos e regras de governança para sistemas de Inteligência Artificial (IA) no Brasil.
-
Governança da IA de baixo para cima
Nos dias 25 e 26/09/25, participamos do evento “Workers Governing Technologies Workshop”, promovido pelo grupo de pesquisa Creative Labour and Creative Futures na Universidade de Toronto no Canadá.
-
A transformação da ANPD: de Autoridade à Agência Nacional de Proteção de Dados
A ANPD encontra-se em um momento decisivo de consolidação institucional, marcado por mudanças normativas e estruturais que reforçam sua posição como órgão regulador central no ecossistema de proteção de dados brasileiro.
-
Já é Carnaval, meu amor, proteja-se!
O Carnaval do Brasil é mundialmente conhecido, seja pela tradição do samba na avenida ou pela imensidão dos blocos de rua. Na euforia dos blocos, muitas vezes encontramos um problema crítico: danos causados a pessoas que tiveram celulares furtados ou roubados, com invasões de contas, redes sociais e aplicativos de mensageria. Confira as dicas para você curtir com segurança!
-
O que está por trás do CPF nas farmácias?
4 conteúdos para você se aprofundar na relação entre dados e farmácias
-
Contribuição para audiência pública sobre aspectos concorrenciais dos ecossistemas digitais
Contribuição da Data Privacy Brasil para a audiência pública do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) sobre os aspectos concorrenciais dos ecossistemas digitais de sistemas operacionais móveis, realizada no dia 19 de fevereiro de 2025.
-
Glossário 2024: os principais temas do nosso ano em um só lugar
Confira cinco conceitos que marcaram o ano de 2024 selecionados pela equipe Data!
-
Conheça a norma do encarregado!
Recentemente a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) publicou o regulamento sobre a atuação do encarregado pelo tratamento de dados pessoais. O Encarregado é uma figura central uma vez que ele é o canal de contato entre o titular dos dados, o agente de tratamento e a ANPD. Separamos tudo o que você precisa saber sobre a nova norma!
DataPrivacyBr Research | Conteúdo sob licenciamento CC BY-SA 4.0