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Projeto Excel: articulação da sociedade civil resulta em Ação Civil Pública do Ministério Público

 Projeto Excel: articulação da sociedade civil resulta em Ação Civil Pública do Ministério Público

No dia 13 de dezembro de 2022, o Ministério Público Federal instaurou a Ação Civil Pública nº 1076871-05.2022.4.01.3400 a fim de impedir o compartilhamento de dados entre Secretarias de Segurança Pública dos Estados e a Diretoria de Inteligência (DINT) da Secretaria de Operações integradas – SEOPI/MJSP, bem como garantir a destruição dos dados  compartilhados até o momento. 

As ações acima referidas são resultados do Projeto Excel, implementado durante a gestão de Jair Bolsonaro na Presidência da República. Instituído pela Portaria nº 26/2020, em 9 de julho de 2020, da SEOPI, ele visa o fornecimento de ferramentas, por parte da SEOPI às Secretarias de Segurança Pública dos Estados, de extração e análise de dados de celulares apreendidos após decisão judicial. Como contrapartida, as secretarias eram obrigadas a solicitar autorização judicial para compartilhar os dados obtidos com a DINT. Assim, o principal objetivo do projeto é gerar base de dados que auxiliem no desenvolvimento de uma inteligência de segurança pública.

Este projeto foi objeto de denúncia feita em 21 de março de 2022 por meio de reportagem publicada no The Intercept pelo jornalista Fernando Ameno. Na matéria evidencia-se que, embora o uso de softwares como o da Cellebrite e outros fornecidos pela SEOPI só possam ser utilizados após acordos formalizados com regulação do uso, houve casos de operações implementadas sem nenhum tipo de supervisão. Esta fiscalização é essencial, uma vez que estas tecnologias são capazes de acessar quase que qualquer dado existente nos dispositivos, inclusive dados em apps de mensagens e jogos, informações deletadas e dados de redes privadas (VPN).

Em vista desta denúncia, ao longo dos meses seguintes, as organizações Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, Conectas, Transparência Internacional, Artigo 19 e Fórum Brasileiro de Segurança Pública se mobilizaram contra a prática da SEOPI e apresentaram um ofício à 7ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, a fim de que fosse instaurado um inquérito para que se obtivesse mas detalhes sobre o Projeto Excel e que, verificando-se a existência de abuso por parte dos órgãos públicos, que houvesse a responsabilização destas entidades. As entidades também realizaram uma reunião técnica com membros do MPF para discutir detalhes técnicos do Projeto Excel, com ênfase em seus aspectos de legalidade e licitude, tendo em visto os riscos aos fundamentos de devido processo e proteção de dados pessoais, previstos na Constituição Federal.

Esta articulação resultou na instauração do Inquérito Civil nº 1.16.000.002757/2022-36. A partir deste inquérito foi apurado que não existe nenhuma norma no ordenamento jurídico que autorize o compartilhamento de dados previsto na Portaria 26/2020, isto é, dados sujeitos à reserva de jurisdição, coletados durante investigações criminais e em que o tratamento de dados visa atender finalidades de inteligência. 

Considerando a decisão do STF na ADI 6529, que impossibilita o uso de dados de inteligência sem motivação adequada e que desrespeite a reserva de jurisdição, o MPF recomendou ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que anulasse os dispositivos da portaria e dos termos de adesão firmado com estados que impunham o compartilhamento de dados. Contudo, em resposta, a SEOPI se negou a alterar seus procedimentos. Em vista desta situação, o MPF ajuizou a ACP contra a União.

A ação civil pública representa um importante avanço na contenção de práticas tecnoautoritárias no Brasil e respeito ao Estado Democrático de Direito. Além disso, trata-se de importante reflexão sobre interpretação das normas constitucionais após decisões paradigmáticas do Supremo Tribunal Federal.

Espera-se que tais práticas sejam revistas no novo governo Lula-Alckmin e que o Ministério da Justiça e Segurança Pública pondere sobre os riscos a direitos fundamentais na utilização de sofisticadas técnicas de extração de dados de aparelhos celulares de suspeitos, que exige um conjunto de freios e contrapesos e arranjos institucionais de garantia de necessidade, legalidade e proporcionalidade.

Gabriela Vergili

Rafael Zanatta