por Carla Rodrigues, Jaqueline Pigatto, e Natasha Nóvoa

A Declaração de Líderes sobre a Governança Global de Inteligência Artificial dos BRICS tem ganhado destaque na mídia brasileira e no mundo, por ser um documento de países do Sul Global que os posiciona na atual disputa dessa tecnologia emergente. Lançado em junho de 2025, durante a presidência brasileira do bloco, o BRICS agora conta com mais países participantes, totalizando um consenso obtido entre Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia e Irã. 

No mesmo mês, a Freedom Online Coalition (FOC) – um grupo que abrange 42 países desenvolvidos e em desenvolvimento, liderado por Holanda, Alemanha, França, Reino Unido e EUA  – lançou também uma declaração sobre Inteligência Artificial. Os grupos não possuem membros em comum, e enquanto os BRICS constituem um esforço multilateral do Sul Global para os mais diferentes temas em cooperação internacional, a FOC é focada em temas relativos à direitos e liberdades na Internet, com enfoque em liberdade de expressão e liberdade de associação.

Apesar de ambos se preocuparem com a governança global de IA na Organização das Nações Unidas (ONU), eles trazem  prioridades e abordagens distintas, mais ou menos específicas, em diferentes tópicos. A principal diferença reside na defesa do multissetorialismo pela FOC, uma entidade que, ainda que seja intergovernamental como os BRICS, busca ativamente a participação da sociedade civil no debate, algo que o Brasil buscou endereçar durante sua presidência dos BRICS esse ano. Essa diferença também se reflete na centralidade que os Direitos Humanos ocupam na declaração da FOC, enquanto os BRICS possuem um alinhamento mais pautado na soberania digital e no fortalecimento político e econômico dos países do bloco.

A FOC não só menciona os Direitos Humanos, mas também especifica ferramentas essenciais na governança da IA, como avaliações de risco e due diligence. Cita, ainda, o UN Guiding Principles on Business and Human Rights, um documento com diretrizes ao setor privado em atuações que impactam diretamente os Direitos Humanos. Enquanto a FOC tem uma preocupação mais focada em coordenação dentro do sistema ONU e com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), os BRICS, apesar de colocarem a centralização na ONU, não detalham como esse trabalho deve ser feito. Isso pode derivar do próprio caráter da FOC, mais voltado para questões digitais, enquanto os BRICS são um grupo bem mais amplo tematicamente. 

Os BRICS apresentam objetivos econômicos e políticos amplamente alinhados e, em sua Declaração, expressam preocupação com o desenvolvimento de uma “Inteligência Artificial Geral” (AGI). O grupo defende a necessidade de uma governança, política e pesquisa em IA que sejam distribuídas de forma equitativa e multipolar, com ênfase no protagonismo dos países do Sul Global. A Declaração dos BRICS assume um papel significativo de contestação à atual ordem digital global, caracterizada pela concentração de poder de big techs, visando reduzir barreiras ao desenvolvimento de tecnologias baseadas em IA por parte dos países do Sul Global e refletindo o compromisso conjunto de seus membros em fortalecer a cooperação econômica, política e social entre si. .

Outro ponto que merece destaque é a diferença de tom adotado no combate à desinformação. Os BRICS demonstraram uma postura mais proativa por parte das instituições públicas no que tange ao monitoramento, correção e orientação de geração de conteúdo potencialmente desinformativos sob o ponto de vista da integridade da informação e na promoção do letramento digital, enquanto a FOC adotou uma postura centrada na liberdade de expressão, um tema central desde a publicação do documento “Joint Action for Free Expression on the Internet” e o compromisso de “compartilhar informações entre Estados sobre potenciais violações e outras medidas que minem a fruição da liberdade de expressão e outros direitos humanos na Internet”. Também, no que se refere à menção aos grupos mais vulneráveis afetados pela IA, os BRICS englobam mulheres, minorias, pessoas com deficiência, crianças, jovens e idosos, já a FOC enfatiza gender-based violence como o principal alvo dos vieses discriminatórios da IA.

Apesar das distinções, um consenso é claro: é preciso um esforço global coletivo para estabelecer padrões mínimos de governança e desenvolvimento da IA. A diferença, entretanto, é a forma e o modo de operacionalização desses objetivos, visto que, inegavelmente, os BRICS priorizam o desenvolvimento e a redução das desigualdades que permeiam o Sul Global, enquanto a FOC pauta a sua atuação na defesa da liberdade de expressão e dos direitos humanos, tendo uma atuação mais aberta sob o ponto de vista geopolítico e à participação da sociedade como um todo.

A participação da sociedade civil é inclusive destacada pela FOC, que menciona o Internet Governance Forum (IGF) e o AI for Good, da União Internacional de Telecomunicações (UIT), como espaços apropriados para o debate de IA, e demanda a inserção do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (OHCHR) no AI Panel e no Global Dialogue, duas iniciativas do sistema ONU para IA que derivam do Pacto Global Digital. As negociações para estabelecimento desses dois novos espaços estão atualmente em andamento na ONU, em Nova Iorque. 

Existe uma forte demanda estatal por espaços deliberativos intergovernamentais, e principalmente do Sul Global, uma demanda por participação igualitária. Ao mesmo tempo, a sociedade civil, a academia, a comunidade técnica, e o setor privado, defendem uma participação multissetorial, onde eles também possam ter voz nas discussões sobre IA e as diretrizes e salvaguardas para seu funcionamento. Ainda não está claro como esses dois novos espaços vão se coordenar, e como terão conexão com espaços já existentes no próprio sistema ONU, como o IGF e o AI for Good, que não são espaços deliberativos, mas permitem aos atores estatais e não-estatais ampla participação. 

Do outro lado, existe também uma preocupação de atores estatais e não-estatais do Sul Global: a multiplicidade de espaços e fóruns dificulta a participação presencial das partes, pelos altos custos de viagem e barreiras como vistos e políticas migratórias. Ainda que reuniões possam ser híbridas, as conversas diplomáticas mais significativas geralmente acontecem nos corredores e nos bastidores dos grandes eventos, impossibilitando assim que atores com menos recursos acessem esses espaços tão importantes. A pactuação do FOC de estimular o diálogo entre governos e sociedade civil organizada é importante e pode servir de exemplo ao BRICS.

Resta, portanto, um desafio: como garantir que as divergências entre o multissetorialismo consigam colocar em prática a governança da IA de forma democrática, equitativa e eficiente?  Essa, sem dúvidas, é uma das principais preocupações sociais, econômicas e políticas atuais. Desse modo, para além dos consensos, é fundamental compreender as divergências que orientam esse debate para que construa um caminho alternativo e colaborativo para a regulação e governança da IA no contexto global.

 

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