Recentemente, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) realizou uma audiência pública para discutir questões concorrenciais em mercados digitais relacionadas aos sistemas operacionais iOS e Android. Como uma das motivações para a Audiência, tem-se o número crescente de denúncias de infrações à ordem econômica em ecossistemas digitais, o que vem suscitando preocupações não somente na Autarquia, mas em vários setores da Administração Pública e da sociedade civil.

Nesse contexto, houve um debate produtivo e multissetorial sobre aspectos relevantes do direito antitruste em mercados digitais que já demonstraram surtir efeito no Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC). Isso, pois, motivado pelas contribuições apresentadas na Audiência Pública, especialmente do Banco Central do Brasil (Bacen), da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e da Zetta, o Cade instaurou, em 03/04/2025, um Inquérito Administrativo para apurar supostas práticas discriminatórias praticadas pela Apple no mercado de sistemas de pagamentos por aproximação em dispositivos móveis, tecnologia conhecida como NFC [Near Field Communication], no sistema IOS.

Em síntese, o Cade entende que a Apple pode estar impondo restrições e dificuldades para que terceiros, como instituições financeiras, tenham acesso à tecnologia NFC e possam oferecer soluções alternativas de pagamento por aproximação, forçando-os a utilizarem o Apple Pay, sua própria plataforma paga, cujo uso é condicionado ao pagamento por estas Instituições. De acordo com a Nota de Instauração do Inquérito, as restrições estariam ocorrendo porque a API (Application Programming Interface) do NFC no IOS é fechada, o que impede terceiros de desenvolverem a sua própria solução de carteira digital nos dispositivos da Apple. 

Para alguns analistas de direito concorrencial, as instituições financeiras com menos poder de mercado podem não estar tendo oportunidades de oferecerem os seus produtos no sistema IOS, uma vez que estão condicionadas a custos elevados e condições contratuais muitas vezes abusivas. Em 2024, a Apple disse que a API do NFC no iOS seria liberada para terceiros, incluindo o Brasil, porém esses anúncios não foram concretizados. Entre os critérios anunciados pela Apple para desenvolvedores está o atendimento a “todos os padrões de segurança e requisitos de privacidade que se aplicam ao tratamento de dados pessoais no território elegível e ao aplicativo da plataforma NFC & SE e ao seu negócio”.

Para além do direito concorrencial, esse cenário demonstra uma barreira ao próprio exercício da cidadania, pois o pagamento por vias digitais nos dias de hoje, longe de ser uma opção, já se mostra uma realidade. Ferramentas como o Gov.br e o próprio PIX demonstram que a migração do analógico para o digital vem se consolidando como forma do exercício da cidadania. Isto, portanto, nos traz um questionamento sobre até que ponto uma plataforma pode interferir no acesso a infraestruturas públicas digitais.

Na concepção do World Bank Group, as APIs consistem em uma das mais importantes tecnologias para garantir a inclusão financeira digital, justamente porque elas podem promover a troca e o acesso a produtos e modelos diversos, dando mais liberdade de escolha ao consumidor. Conforme entende o Banco Central

[1] [1] Como bem levantou o BACEN ao Cade, esses foram os pilares do PIX, que consiste em um meio acessível e gratuito para pessoas físicas, que não admite cobrança pelo seu uso e nem tarifas de intercâmbio entre os participantes do arranjo, de modo que qualquer custo adicional para terceiros ofertarem Pix por meio do Apple Pay ou pelo acesso à tecnologia NFC em dispositivos iOS inviabilizaria a adoção do Pix por aproximação nesses dispositivos. 

, os meios virtuais devem ser utilizados como uma solução para tornar o sistema de pagamento mais eficiente, acessível e menos custoso ao cidadão

[2] [2] Ver também BIS (Bank for International Settlements) – Committee on Payments and Market Infrastructures – & Banco Mundial. Payment aspects of  financial inclusion. Abril de 2016. Disponível em: https://www.bis.org/cpmi/publ/d191.pdf

, pois a participação popular não é somente um requisito democrático, mas um pré-requisito da eficiência de qualquer política digital (Luciano, 2024). 

No texto da Data “Beyond Digital Rights: Towards a Fair Information Ecosystem?” os autores reforçam que um dos principais desafios no âmbito digital é a segmentação das esferas e a hiperespecialização, decorrente de processos como dataficação e plataformização. Essas barreiras contribuem para o crescimento de monopólios digitais e para uma estrutura de poder cada vez mais centralizada em menos agentes econômicos, dando-lhes permissão para reconfigurar as dinâmicas de poder entre corporações, Estados e Sociedade Civil.

Quando uma conduta, além de impedir a inovação e prejudicar a concorrência, cria barreiras para o uso de soluções indispensáveis ao exercício da cidadania, tem-se uma preocupação que vai além da análise antitruste tradicional, pois o impacto não é somente econômico, mas também político e social.

O anúncio do Pix por aproximação pelo Banco Central do Brasil traz esse debate à tona no Brasil. Se o Pix é uma infraestrutura pública digital, até que ponto a Apple pode induzir manter medidas restritivas sobre sua tecnologia NFC? Há um problema para os direitos difusos e a ordem econômica do ponto de vista da cidadania?

Retoma-se, então, o título do presente ensaio: pode o Cade proteger a infraestrutura pública digital? Não somente pode, como deve. Como um dos guardiões da ordem econômica brasileira, sua orientação precisa ser pautada na justiça social, na redução das desigualdades e, claro, na repressão da concentração e abuso do poder econômico. É preciso lembrar que a Defesa da Concorrência está dentro de um campo bem mais amplo, qual seja, o Direito Econômico. E ambos precisam caminhar juntos, dialogando e contestando as suas bases, para que a realidade econômica, política e social imposta pelos mercados digitais não seja meramente tolerada, mas se adeque aos direitos fundamentais e a uma concorrência justa e efetiva.

A atuação da Data contra os monopólios digitais

A Data também esteve presente na Audiência Pública realizada em 19/02/2025, pelo Cade. Na nossa Contribuição, destacamos a decisão do caso Epic Games v. Google, que, ao permitir que desenvolvedores utilizem métodos de pagamento alternativos, a Justiça dos EUA reduziu o controle do Google sobre informações transacionais dos usuários, enfraquecendo seu poder de mercado, além das medidas clássicas de antitruste. Esse precedente demonstra como a abertura de APIs pode ser uma aliada no combate à concentração econômica.

Dando continuidade na defesa da concorrência justa, e dos direitos fundamentais, a Data ingressou em um novo projeto chamado “Digital Merger Watch” com o objetivo de monitorar e analisar as fusões e aquisições em mercados digitais que podem ferir a livre concorrência. Ontem (15/04/2025) foi divulgada a Data base realizada pelo Projeto, que demonstra fusões e aquisições realizadas pelas Big Techs nos últimos anos, nos alertando para a expansão sem precedentes de tais plataformas.

O que vem por aí

Nas próximas semanas, a Data também lançará um novo relatório sobre Infraestruturas Públicas Digitais e arquiteturas informacionais que possam avançar direitos fundamentais. O Pix é um exemplo desse tipo de IPD.

O caso envolvendo a Febraban, Zetta e Apple é bastante relevante para um ecossistema informacional justo. O Apple Pay não é atualmente um “Iniciador de Transações de Pagamento” (ITP) autorizado pelo Banco Central, o que significa que não pode oferecer diretamente o Pix por aproximação. No entanto, podemos discutir como se dão as conexões entre Infraestruturas Públicas Digitais e a regulação financeira, econômica e de proteção de dados pessoais no Brasil.]

O Banco Central publicou tomada de subsídios para obter contribuições para o aprimoramento da regulação de arranjos de pagamentos integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). A discussão envolve armazenamento de “tokens de dados de instrumentos de pagamento”, como os oferecidos por carteiras digitais tais como Apple Pay, Samsung Pay e Google Pay. A consulta vai até 2 de junho de 2025.

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