Na última terça-feira (12), o novo relatório do Projeto de Lei 2628/2022, que trata da proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, de autoria do senador Alessandro Vieira (MDB/SE), foi apresentado pelo deputado Jadyel Alencar (Republicanos/PI). Com 93 páginas, o documento sintetiza os 12 capítulos do texto e incorpora contribuições da sociedade civil, especialistas e setor privado.

O Projeto está em tramitação no Congresso desde 2022, tendo passado por várias audiências públicas, apresentações de emendas e notas técnicas. Entretanto, o texto se destacou nos últimos dias após a viralização de um vídeo-denúncia intitulado “Adultização”, produzido pelo influenciador Fernando Bressanim Pereira (“Felca”) no dia 06/08. O vídeo aborda graves problemas relacionados à exploração comercial de crianças, à violação dos direitos fundamentais à privacidade e à sexualização precoce desse público, incluindo casos de abuso e pedofilia, que se agravam devido à ausência de moderação adequada de conteúdo em situações como essas.

Após a grande repercussão do vídeo do Felca, senadores formalizaram uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a sexualização de crianças nas redes sociais, com foco na atuação de influenciadores e plataformas digitais. O tema rapidamente ganhou destaque nacional, tornando-se um dos assuntos mais discutidos na semana. Diante da mobilização, o presidente da Câmara, Deputado Hugo Motta, declarou que a proteção de crianças e adolescentes passará a ser prioridade nas agendas legislativas. Ele afirmou a continuidade da Comissão Geral e o Grupo de Trabalho que analisará mais de 60 projetos de lei relacionados ao tema e vai levar a urgência da votação do PL 2628/22 para o colégio de líderes na próxima terça-feira (19). Esse novo contexto impulsionou o relator do Projeto de Lei 2628/2022, deputado Jadyel Alencar (Republicanos/PI), a apresentar um parecer atualizado na Comissão de Comunicação, com um texto substitutivo. 

Mas, afinal, quais foram as principais mudanças propostas?

 

Principais pontos do relatório

O primeiro ajuste foi realizado logo na sua ementa, que agora incorpora o apelido “ECA Digital”. Para o Deputado Jadyel (Republicanos/PI), essa expressão facilita a identificação pública e a observância social. O escopo do Projeto também foi ampliado. Inspirado no Online Safety Act e no Age Appropriate Design Code, o relator acolheu as sugestões feitas pelo Instituto de Defesa dos Consumidores (IDEC) no sentido de definir os agentes alcançados pela proposição: a Lei deve ser aplicada nos casos de uso provável ou significativo por crianças e adolescentes. 

Conforme o texto substitutivo, o acesso provável será considerado por meio da avaliação da facilidade de acesso e utilização do produto ou serviço e da sua probabilidade de uso e atratividade, sendo, um dos critérios sugeridos para a avaliação desse acesso, os riscos à privacidade, à segurança ou ao desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes. Nota-se, portanto, que o relatório expressamente incorpora a ideia de abordagem baseada em risco.

Entretanto, não foram acolhidas as propostas que pretendiam restringir o escopo do projeto a serviços e produtos digitais direcionados a crianças e adolescentes, uma vez que o relator considerou que, embora o público infanto-juvenil não seja o alvo principal de determinado conteúdo, muitas vezes ele está presente como usuário. Como exemplo, ele se utilizou da pesquisa da TIC Kids Online, que demonstra a presença diária de crianças e adolescentes em plataformas que não as tem como público principal, mas que fazem apelo e se direcionam, ainda que de forma velada, a tal faixa etária. Ou seja, de acordo com o texto, a restrição da legislação apenas aos serviços explicitamente direcionados a crianças e adolescentes seria incapaz de garantir uma proteção eficiente do público infantil. 

Novos fundamentos referentes à delimitação dos deveres dos provedores também foram adicionados ao texto. Agora, a redação do art. 4º inclui a promoção da educação digital, com foco no desenvolvimento da cidadania e do senso crítico, assim como focada na transparência e na responsabilidade no tratamento de dados pessoais de crianças e adolescentes, como fundamentos do uso dos produtos e serviços digitais. Além disso, sugeriu-se a substituição da expressão “dever de cuidado” pelo dever de “prevenção, proteção, informação e segurança” no artigo 5º. No mesmo dispositivo, também foi inserido o § 2º, que passou a definir a expressão “melhor interesse de crianças e adolescentes” a partir de exemplos, como proteção à privacidade, segurança, saúde mental e física.

A busca de mais clareza e precisão quanto aos conteúdos sujeitos à mitigação de acesso por crianças e adolescentes também foi abordado. Nesse aspecto, o relator acolheu as sugestões feitas pela Coalizão Direitos na Rede (CDR), da qual a Data faz parte, IDEC e Instituto Alana, de incluir, além dos conteúdos que incentivam a automutilação, as “bets” – apostas de apostas de quota fixa – como conteúdos que devem ser submetidos a medidas de prevenção e mitigação de acesso pelas plataformas.

Como fundamento, o relator levantou dados que demonstram a (i) natureza diferenciada das Bets; (ii) elevada exposição e vulnerabilidade de acesso; (iii) facilidade de acesso e ausência de barreiras efetivas; (iv) a publicidade dirigida na indução à aposta e (v) precedentes relevantes na suspensão de publicidades de bets com base em denúncias e investigações sobre exploração comercial infantil. 

O art. 11º, § 4º, VIII, do Projeto foi também suprimido. O dispositivo previa o controle parental sobre funcionalidades baseadas em inteligência artificial (“IA”) não estritamente necessários ao funcionamento dos sistemas e que podem colocar em risco o desenvolvimento de crianças e adolescentes. Para o Deputado, essa interpretação poderia levar a uma restrição geral do uso da IA. Ademais, a expressão “controle parental” foi substituída ao longo do texto por “supervisão parental”, com a justificativa de melhor garantia do equilíbrio entre a flexibilidade e autonomia das crianças.

O design das plataformas digitais também foi alvo de atenção. O relator considerou, no art. 8º, que as plataformas devem prever a adoção de padrões que desestimulem o seu uso compulsivo por crianças e adolescentes, uma vez que os seus desenhos costumam ser projetados para estimular o uso viciante dos produtos ou serviços ofertados. Isso dialoga com a vedação ao uso de técnicas de perfilamento comportamental e análise emocional para o direcionamento de publicidade a crianças e adolescentes, que originalmente era prevista no art. 16º e agora passa a ser prevista no art. 22° – um ponto central defendido pela Data Privacy Brasil.

Um avanço significativo do substituto pode ser observado na manutenção da vedação ao uso de técnicas de perfilamento comportamental e análise emocional para o direcionamento de publicidade a crianças e adolescentes. A Data contribuiu ativamente nessa discussão. Conforme mencionado no novo relatório, durante a audiência pública do dia 22/05/2025, a nossa diretora Mariana Rielli reforçou a existência da Resolução Conanda nº 245, de 2024, que veda a prática de perfilização para fins de direcionamento de publicidade para pessoas em desenvolvimento, assim como a Resolução nº 163 do Conanda e as disposições do CDC, do ECA e da Constituição Federal. Ressaltamos, também, que a prática de perfilamento já se mostrava incompatível com o Comentário Geral nº 25/2021 do Comitê das Nações Unidas sobre Direitos das Crianças, que orienta os países a proibirem essa prática por meio de lei. 

Outro ponto foi a exigência de medidas de verificação etária por parte das lojas de aplicativos e sistemas operacionais, sobre crianças e adolescentes que realizam downloads de aplicações de internet. O relatório inseriu um novo dispositivo que demanda uma sinalização desses agentes sobre a idade dos usuários que baixaram os conteúdos aos provedores das aplicações baixadas, por meio de uma interface padronizada de programação de aplicativos (API). De acordo com o relator, essa medida visa mitigar o risco de vazamentos e manipulações indevidas dos dados pessoais de crianças e adolescentes e seus responsáveis.

O entendimento acerca das caixas de recompensas ou, conforme expressão inglês, loot boxes, também mudou. Antes, a oferta destas caixas eram totalmente vedadas pelo art. 14º em jogos eletrônicos utilizados por crianças e adolescentes. Agora, porém, sugere-se a vedação apenas daquelas caixas que permitem ao usuário auferir ganhos financeiros ou vantagens anticompetitivas mediante pagamento. A oferta dos loot boxes foi também condicionada à classificação indicativa e à obrigação de concessão, pelo ofertante, de pelo menos um item virtual ou vantagem em cada caixa adquirida. 

Nota-se que o texto traz mudanças importantes, mas também reforça entendimentos anteriormente defendidos. Além de permitir o diálogo e trazer novos pontos de atenção, o relatório também serve como uma prévia das discussões e votações do texto no Plenário. No item abaixo, faremos uma breve análise do voto do relator, reiterando o posicionamento da Data na última Nota de apoio ao PL e da nossa participação na Audiência Pública do dia 22/05/2025, que foi, inclusive, mencionada nas páginas 17 e 18 do texto.

 

Análise do Substitutivo ao PL 2628/2022

O substitutivo apresentado pelo deputado Jadyel Alencar (Republicanos/PI) representa um marco relevante na tramitação do PL 2628/2022 e consolida um texto legal ponderado, protetivo às crianças e com avanços substanciais para os problemas de datificação e plataformização da infância. 

A proposta não apenas atualiza o texto legislativo à luz de novas contribuições, mas também consolida um acúmulo de debates e articulações construídas desde 2022. Ao incorporar sugestões da sociedade civil, especialistas, órgãos públicos e também do setor privado, evidencia-se um esforço de convergência que reforça o caráter participativo do processo legislativo. Essa abordagem é positiva, pois amplia a legitimidade democrática da norma e sua capacidade de enfrentar problemas concretos no ambiente digital.

Entretanto, em um projeto de elevada complexidade e com histórico consistente de amadurecimento legislativo, as alterações feitas nesta etapa devem ser avaliadas com cautela, sempre sob a ótica da integridade protetiva. Ajustes e aperfeiçoamentos são bem-vindos, mas não podem resultar em fissuras que fragilizem a aplicação da lei ou comprometem seu alcance.

Como destacam o art. 227 da CF/88 e a Resolução nº 245/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), a proteção integral exige que concessões normativas sejam rigorosamente avaliadas sob o prisma do “melhor interesse da criança”. Tal princípio não se aplica apenas ao Estado e à sociedade civil, mas também ao setor privado, inclusive às plataformas digitais, em regime de responsabilidade compartilhada com famílias, governo e empresas provedoras de produtos e serviços digitais, a luz do dever inclui garantir um ambiente digital seguro, livre de assédio e de exploração

A seguir, apresentamos uma tabela comparativa que destaca os principais pontos positivos e os aprimoramentos introduzidos no substitutivo em relação ao texto original.

 

Pontos positivos e avanços

Pontos positivos e avanços – Comparativo entre texto anterior e atual
Tema Texto Anterior Texto Atual
Vedação ao perfilamento e análise comportamental Art. 16: “É vedada a utilização de técnicas de perfilamento para direcionamento de publicidade a crianças e adolescentes, bem como o emprego da análise emocional […] para esse fim.” Art. 22: Mantém e reforça a “vedação ampla e integral ao perfilamento comportamental e à análise emocional de crianças e adolescentes para fins de direcionamento publicitário comercial”.
Denominação “ECA Digital” Não havia menção à expressão. Ementa passa a incorporar o apelido “ECA Digital”.
Definição de “acesso provável” Mencionava apenas produtos e serviços “de provável acesso” sem detalhar critérios. Art. 1º, parágrafo único: Define critérios objetivos como atratividade, facilidade de acesso e riscos à privacidade, segurança ou desenvolvimento psicossocial.
Mitigação de conteúdos nocivos Já previa medidas contra conteúdos que incentivassem automutilação e ilícitos. Art. 6º, IV: Inclui “apostas de quota fixa” como nocivo e detalha outros conteúdos prejudiciais.
Integração com padrões internacionais Não havia referência explícita. Aproxima o Brasil de modelos como o Online Safety Act, com foco em design seguro e prevenção de riscos sistêmicos.
Ferramentas de supervisão parental Art. 6º mencionava mecanismos de controle parental efetivos e de simples utilização. O Art. 12 substituiu o termo “controle parental” por “supervisão parental”.
Classificação indicativa e controle parental em jogos eletrônicos Previa alinhamento à classificação indicativa. Art. 15: Reforça a obrigatoriedade de alinhamento à classificação indicativa e prevê medidas adicionais para interação segura entre usuários, fortalecendo a supervisão de ambientes virtuais interativos.
Prevenção e combate a violações graves Não havia um capítulo específico. Art. 15 tratava de mecanismos de denúncias e notificações ao Ministério Público para investigação. Art. 26 inclui: “Os fornecedores de produtos ou serviços de tecnologia

da informação disponíveis em território nacional devem comunicar os

conteúdos de aparente exploração, abuso sexual, sequestro e aliciamento detectados em seus produtos ou serviços, direta ou indiretamente, às

autoridades nacionais e internacionais competentes.”

Obrigações adicionais para grandes plataformas Art. 17 previa que os provedores de aplicação que possuírem mais de 1 milhão de usuários crianças e adolescentes registrados, com conexão de internet em território nacional “deverão elaborar relatórios semestrais, em língua portuguesa, contendo: (lista 6 itens, ex: canais de denúncia, quantidade de denúncias e moderação de conteúdo/contas).” Art. 30, VII inclui a exigência de “detalhamento dos métodos utilizados e apresentação dos resultados das avaliações de impacto, identificação e gerenciamento de riscos à segurança e à saúde de crianças e adolescentes.”
Imposição a obrigação de empresas estrangeiras a ter representantes legais no Brasil Não havia um dispositivo prevendo a obrigação de empresas manterem representante legal no Brasil. Agora, essa obrigação está expressamente prevista: Art. 39. Os fornecedores dos produtos e serviços de que trata o art. 1º deverão manter representante legal no País com poderes para receber, entre outros.

 

Síntese e recomendações para deliberação

Entendemos que o  substitutivo ao PL 2628/2022 consolida-se como a proposta mais madura e tecnicamente fundamentada para proteger crianças e adolescentes no ambiente digital. Seu conteúdo é fruto de três anos de debates qualificados (2022-2025), incorporando contribuições plurais que reforçam sua legitimidade democrática e alinham o Brasil a padrões globais como o Age-Appropriate Design Code e o Online Safety Act.

Do ponto de vista normativo, o substitutivo adota uma abordagem sistêmica, orientada por evidências, para enfrentar os diversos riscos digitais que afetam crianças e adolescentes. Entre eles, destacam-se o uso de ferramentas que induzem a práticas nocivas, a coleta abusiva de dados pessoais, a exposição a conteúdos inadequados, o direcionamento de publicidade e a manipulação algorítmica.

Para tanto, o texto reforça a observância do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU. Ao reafirmar o princípio do interesse superior da criança, o substitutivo fortalece os pilares da proteção integral e da corresponsabilidade de agentes públicos e privados na garantia de um ambiente digital seguro, ético e inclusivo para crianças e adolescentes.

A Data Privacy Brasil defende que a resposta a esses desafios seja integrada, tratando a proteção contra abusos e a contenção da exploração comercial como aspectos inseparáveis da mesma agenda. É igualmente essencial reforçar a participação de crianças e adolescentes nos processos decisórios sobre tecnologias que afetam suas vidas, em consonância com o Comentário Geral nº 25 do Comitê dos Direitos da Criança da ONU.

Rejeitamos interpretações baseadas no conceito de “imperativo de consumo”, oriundo das normas do CONAR, para definir publicidade abusiva. No caso de crianças e adolescentes, toda exploração comercial é ilícita, independentemente da forma ou da intensidade da mensagem. A interpretação coerente do sistema de direitos exige a vedação ampla da criação de perfis comportamentais de crianças, não apenas quando há apelo explícito ao consumo.

Também é preciso reconhecer que, em um país marcado por profundas desigualdades socioeconômicas e raciais, a ausência de proteção online fortalece a exploração de crianças em contextos de maior vulnerabilidade. Nessas realidades, dados são coletados sem consentimento real ou mediação crítica, agravando riscos e ampliando injustiças.

As soluções previstas devem estar fundamentadas em evidências e alinhadas às melhores práticas internacionais, sendo acompanhadas por mecanismos robustos de fiscalização, especialmente por parte da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e demais órgãos competentes.

A mobilização social e a atenção do parlamento, intensificadas após a ampla repercussão do vídeo do comunicador Felca, configuram uma oportunidade rara de promover mudanças estruturais e a aprovação do PL 2628/2022. Converter esse momento em avanços concretos exige foco, responsabilidade e coerência: é essencial garantir a proteção da infância de forma integral, duradoura e sustentável no ambiente digital.

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