Tecnoautoritarismo e o controle das atividades de inteligência: por que a CCAI não está analisando mais casos?
Falta transparência na Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência, órgão legislativo de fiscalização e controle externo das atividades de inteligência e contrainteligência no Brasil, que deixou de analisar casos importantes entre 2020 e 2021.
A CCAI, Comissão Mista de Controle de Atividades de Inteligência, é o órgão legislativo para fiscalização e controle externo das atividades de inteligência e contrainteligência, bem como outras a elas relacionadas, a fim de garantir que tais ações atendam à Constituição Federal e preservar o Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 6º da Lei 9.883, de 1999, e Resolução nº 2 de 2013, do Congresso Nacional (“Resolução”).
Conforme a Resolução, as atividades abarcadas sob o escopo da CCAI incluem ações da Administração Pública Federal executadas dentro ou fora do Brasil, em especial pelos órgãos integrados ao Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN) (art. 2º), que atualmente totalizam 48 entidades.
A função deste sistema é integrar as ações de inteligência e auxiliar no processo decisório do Poder Executivo por meio da coleta e análise de informações e a produção de disseminação de conhecimentos (art. 1º, Decreto nº 4.376, de 2002). Atualmente, apenas não fazem parte do SISBIN os ministérios da Cidadania, Trabalho e Previdência, e Turismo.
A Comissão pode ser acionada para exercer suas competências por meio de requerimentos de informação elaborados por membros ou comissões do Congresso Nacional, Câmara dos Deputados ou Senado Federal (art.16, da Resolução). A análise de tais requerimentos permite compreender quais assuntos têm sido tratados pela Comissão, assim como que acontecimentos tem preocupado de forma mais intensa os membros do Poder Legislativo.
Nesta linha, durante o início do ano de 2022, a Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa fez um levantamento sobre os requerimentos apresentados entre 2020 e 2021, organizados na seguinte tabela. Foram 29 requerimentos no total, relacionados a 8 casos distintos, agrupados com base em temas gerais:
Ilícitos de conduta e abuso de poder:
Abin na COP – sobre a presença de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no evento da ONU, COP25, referente à questões de meio ambiente e mudança climática. O evento deveria ter sido sediado no Brasil, mas foi vetado pelo presidente Bolsonaro, fazendo com que fosse reorganizado em Madrid. Ainda assim, agentes foram enviados ao evento onde estavam presentes diversos ativistas.
Abin paralela – sobre a criação de uma aparato paralelo de inteligência por parte do presidente Bolsonaro.
Dossiê antifascista – sobre a criação, pela Seopi (Secretaria de Operações Integradas), de um dossiê que catalogava ativistas, professores, entre outros cidadãos que apresentassem posicionamentos contrários ao governo.
Rachadinhas – uso da inteligência para interferir em processo judicial envolvendo o senador Flávio Bolsonaro.
Novas tecnologias e integração de bases de dados:
Abin-CNH – sobre o pedido da Abin ao SERPRO para acesso ao sistema conhecido por RENACH, de responsabilidade do DENATRAN.
Integração CONSISBIN – sobre as autorizações arbitrárias (e fora do escopo de competência) do Conselho Consultivo do SISBIN (CONSISBIN) para integrar órgãos ao SISBIN, incluindo a Seopi.
Pegasus – sobre a aquisição pela Seopi do sistema de espionagem Pegasus.
Soberania nacional e inteligência:
CIA no Brasil – sobre a visita do Chefe da CIA ao Brasil.
Entende-se que alguns casos poderiam se enquadrar em mais de um dos temas elegidos, ainda assim, a escolha da divisão se deu de modo a destacar o aspecto distintivo mais relevante sobre cada caso.
Além da divisão por temas, também pareceu interessante “taguear os casos” (classificá-los usando a funcionalidade de “tag”, ou etiqueta) com base no envolvimento e/ou menção à Seopi nos requerimentos, bem como envolvimento de Bolsonaro e sua família nos casos. Destacamos que a classificação se deu considerando o conjunto de requerimentos relacionados e não cada requerimento individualmente, de modo que as tags são sempre as mesmas para todos os requerimentos referentes ao mesmo caso.
Sobre as etiquetas em si, a tag sobre a relação de Bolsonaro com os casos visa demonstrar que há uma preocupação constante por parte dos requerentes com relação a assuntos que o envolvem, como os casos das Rachadinhas (11 requerimentos) ou do Dossiê antifascista (7) que juntos representam mais da metade dos requerimentos feitos à CCAI. Ressalta-se aqui que a maioria dos requerimentos foi feita pelas lideranças da minoria no Congresso, podendo demonstrar também um possível desinteresse por parte dos demais membros em acionar a CCAI, provavelmente, buscando outras comissões para divulgarem suas pautas.
Como mencionado, também foram adicionadas tags sobre envolvimento e menção à Seopi. A primeira refere-se à existência de envolvimento direto do órgão ainda não explicitamente mencionado nos requerimentos, e a segunda à existência de menção explícita à secretaria. Aqui, nota-se que dos 8 casos, 4 (Abin paralela, Dossiê antifascista, Integração CONSISBIN e Pegasus) envolvem a Seopi, ainda que em dois deles ela não seja mencionada nos requerimentos. Essa classificação considera também matérias jornalísticas sobre os casos que permitem fazer a associação com a Seopi como entidade envolvida.
Esta observação levanta questionamentos com relação à por que a CCAI não está apreciando mais casos em que a secretaria está envolvida, uma vez que, entre outras competências, participa de operações de inteligência assessorando o Ministro de Estado, garantindo a integração entre órgãos de inteligência e segurança pública, bem como seus respectivos sistemas de inteligência (art. 29, Decreto nº 9.662, de 2019).
Exemplos de outros casos seriam: (i) a aquisição de ferramenta oferecida pela empresa Harpia Tech que permitiria a coleta massiva de informação, como dados pessoais e atividade online e acadêmica, bem como elaboração de conexões entre indivíduos; (ii) o desenvolvimento do Córtex, que permite o acesso e cruzamento de diversas bases de dados, além de estar integrado a câmeras viárias; e (iii) o Projeto Excel em que é utilizado um software da empresa Cellebrite também com funções que permitem extração de dados de dispositivos eletrônicos, nuvem, apps e redes sociais. Todas estas ferramentas adquiridas pela Seopi são softwares que poderem ser utilizados para ações tão graves quanto às do caso Dossiê antifascista ou piores, ainda mais considerando que a Seopi está desde 2019 integrada ao SISBIN.
No mais, durante o levantamento também foi possível perceber a falta de transparência da CCAI em relação à divulgação de informações em plataforma online. É possível notar que os processos de análise dos requerimentos apenas deixam disponíveis o documento dos requerimentos em si, mesmo quando a tramitação já está encerrada. Isto é, não é possível acessar nenhum documento sobre as medidas tomadas para atendimento da demanda e nem seu resultado em mais detalhes por meio do portal de acesso à requerimentos. Com relação às reuniões da CCAI, que foram acessadas para verificar se havia informações sobre os requerimentos, percebe-se uma inconsistência com relação às informações fornecidas, em algumas havendo atas ou vídeos e outras sem nenhum documento ou com indicação de reunião secreta. Destaca-se que não foi possível identificar decisões específicas sobre os requerimentos.
Entende-se que parte da falta de transparência decorre do caráter secreto das reuniões e comunicações internas e externas da CCAI, conforme o art. 22 e 25 da Resolução. Ainda assim, dados mínimos como confirmação da convocação dos agentes e representantes de órgãos requisitados a prestar depoimentos e como a matéria foi encaminhada poderiam ser deixados mais claros, para fins de controle social.
Abaixo encontra-se a compilação dos requerimentos encontrados, referentes aos anos de 2020 e 2021:
[PLANILHA INTERATIVA DISPONÍVEL PARA NAVEGAÇÃO NO NOTION – BASTA CLICAR NA IMAGEM PARA SER REDIRECIONADO]
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