O reconhecimento fotográfico é muito utilizado pelas delegacias para fins de investigação e persecução penal. O procedimento consiste em demonstrar fotos de potenciais suspeitos para que as vítimas reconheçam a face de criminosos nas repartições policiais, auxiliando agentes públicos na identificação de autoria de crimes. Ainda que seja uma prática extremamente comum no Brasil, não existe regulamentação específica para seu uso: sua referência é o artigo 226 do Código de Processo Penal, que diz respeito ao reconhecimento de pessoas de forma presencial. 

Por conta disso, uma série de prisões de pessoas inocentes têm sido noticiadas em todo o país. Em setembro de 2021, um cientista de dados foi preso acusado de integrar milícia de bairro no qual nunca residiu; outro homem foi acusado 9 vezes por crimes que não cometeu por ter sua imagem no álbum de suspeitos da 57ª Delegacia do Rio de Janeiro; além de dezenas de outros casos semelhantes relatados pela Folha de São Paulo ao redor do Brasil. Face à problemática, a Associação de Pesquisa Data Privacy entrevistou alguns atores em videorreportagem disponível aqui.. 

Recentemente um Grupo de Trabalho foi instaurado no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para traçar protocolos que evitem novas prisões de inocentes. O debate, no entanto, precisa avançar para um tema ainda incipiente: a proteção de dados pessoais na esfera penal.

Retrato sem lei

A existência dos álbuns de suspeitos faz indagar como essas imagens foram parar nas delegacias. É recorrente que sua origem sejam redes sociais, flagrantes ou grupos em aplicativos de comunicação utilizados por policiais. Sem saber o porquê, essa arbitrariedade na definição de “suspeito” pode fazer com que uma acusação inverídica fundamente decisão judicial condenatória. A exibição das fotos viola não apenas o direito constitucional à intimidade (art. 5º, X), como também a presunção de inocência (art. 5º, LVII) – já que, se está naquele catálogo, assume-se ser um criminoso, mesmo sem provas.

Essa violação tem viés racial evidente: segundo o relatório do CONDEGE, 80% de erros em reconhecimentos fotográficos são de pessoas negras, dado reiterado pela Coordenação  de  Defesa  Criminal  da  Defensoria  Pública  do Estado do Rio de Janeiro, com 83% de pessoas negras apontadas como suspeitas sendo inocentadas após reconhecimento fotográfico em sede policial. 

Governança de dados

Nesse sentido, a governança do tratamento de dados pessoais em investigações e persecução penal é essencial para mitigar possíveis riscos a direitos e garantias fundamentais. É preciso entender como essas imagens chegam às delegacias, por qual motivo aqueles indivíduos são categorizados como suspeitos e, por fim, definir um prazo para a eliminação das fotos. Destaca-se os seguintes pontos de atenção:

Veto a tecnologias de automação

Considerando a inserção de ferramentas com reconhecimento facial na segurança pública

[1] [1] Cíntia Falcão descreve como a Bahia está se transformando em um laboratório de vigilância: mesmo com só 3,6% dos alertas de reconhecimento facial se tornarem mandados de prisão em 2019, a tecnologia continua sendo amplamente implementada. Disponível em: https://theintercept.com/2021/09/20/rui-costa-esta-transformando-a-bahia-em-um-laboratorio-de-vigilancia-com-reconhecimento-facial/. Acesso em: 7 out. 2021.

, é preciso se atentar à escalabilidade de violações à população vulnerável. Mesmo utilizando bancos de dados oficiais, um erro no tratamento das informações pode significar danos a milhares de pessoas cadastradas em dado sistema, como no caso de algoritmos com viés racial ou de gênero. Por isso é importante vetar expressamente a coleta de dados biométricos a fim de categorizar indivíduos, suspeitos ou não.

Ciclo de vida dos dados

As imagens em álbuns de suspeitos devem ter um ciclo de vida dos dados bem definido: quais imagens podem ser utilizadas, seus parâmetros, como deve ser realizado esse tratamento e, principalmente, o tempo limite para uso, devendo ser realizada a eliminação desses dados após atingida a finalidade. Essa regulamentação é essencial para efetivar direitos e garantias fundamentais, especialmente o direito à proteção de dados pessoais, direito à intimidade e presunção de inocência, evitando erros não apenas na fase de investigação, mas também no judiciário.

Transparência

Para garantir que essas salvaguardas sejam cumpridas, é necessário estabelecer mecanismos de prestação de contas a respeito do uso de dados pessoais, especialmente as imagens acessadas em atividades de investigação e persecução penal. Assim, recomenda-se: i) a produção de manuais de conduta sobre os procedimentos adequados para a validade jurídica do procedimento; ii) garantia de acesso  aos  dados  e informações  em  relação  à  forma  de  ingresso  de  sua  fotografia; iii) produção estatística de sua aplicação nacionalmente; e iv) controle social externo para as recomendações aqui propostas.

A dogmática da proteção de dados pessoais

Ainda que a Lei Geral de Proteção de Dados não se aplique ao tratamento para fins exclusivos de segurança pública (art. 4º, III, LGPD), o direito à proteção de dados foi considerado fundamental (art. 5º, LXXIX) a partir da Emenda Constitucional nº 115/2022, de modo aplicação de seus princípios  efetivam garantias e liberdades constitucionalmente garantidas. Ao adotar as medidas acima mencionadas, tem-se maior controle sobre as atividades de investigação, evitando erros que perduram perante o poder judiciário e ameacem a confiança no Estado Democrático de Direito.

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