O governo Jair Bolsonaro está usando a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), em vigor desde setembro de 2020 e cujo objetivo é proteger direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade de indivíduos, para impedir o acesso a informações públicas.

Direito fundamental previsto na Constituição de 1988 e regulamentado pela Lei de Acesso à Informação (LAI), a norma de transparência completará dez anos de regulamentação em maio de 2022. LAI e LGPD são fruto de anos de trabalho e pressão da sociedade civil organizada, que visam garantir os direitos constitucionais de todos os brasileiros.

Em tese, não haveria nenhuma incompatibilidade entre essas leis: uma garante a publicidade de informações públicas, e a outra protege direitos fundamentais do cidadão relacionados aos seus dados pessoais. Tanto a liberdade de informação como o exercício da cidadania são fundamentos da LGPD. Curiosamente, no entanto, a LGPD tem se transformado em escudo argumentativo para impedir acesso à informações de natureza pública.

Dicas de segurança e privacidade em redes sociais

Disseminada em diferentes órgãos da administração pública federal, a violação das regras da LAI tem colocado sob sigilo, sem a adequada fundamentação legal, um amplo conjunto de informações de evidente interesse público. Um levantamento feito pelo jornalista Eduardo Goulart para a Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada na LAI, identificou 79 pedidos de acesso à informação feitos a órgãos públicos federais e negados até a terceira instância com base na LGPD.

Pedidos de informação só chegam até esta instância administrativa quando o órgão requerido negou acesso aos dados por três vezes, mesmo depois de reclamações (também conhecidas como recursos) registradas pelo requerente de informações. Nesta etapa, cabe à Controladoria-Geral da União (CGU) e à Comissão Mista de Reavaliação de Informações (CMRI) decidir se as informações são públicas ou não.

O levantamento mostrou que, em 40 casos, os órgãos foram derrotados em sua interpretação da LGPD após os recursos e obrigados a fornecer informações, ainda que parcialmente. O número de pedidos negados e de erros na interpretação desta lei deve ser maior, já que muitos requerentes desistem no meio do caminho por causa da demora no atendimento ou por não saber apresentar um recurso.

Entre o registro de um pedido e uma avaliação de terceira instância pode-se ter de esperar por meses. Um exemplo de pedido feito com base na Lei de Acesso à Informação e negado pelo governo federal sob a alegação de que a sua disponibilização afrontaria a LGPD é o registro de visitantes do Palácio do Planalto, caso amplamente divulgado pela Folha. O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), chefiado pelo general Augusto Heleno e que tem como uma de suas competências coordenar as atividades de segurança da informação e das comunicações da Presidência da República, negou por oito vezes solicitações de acesso a informações sobre quem entra e quem sai da sede do prédio, em Brasília.

O presidente Jair Bolsonaro em 2021

Em um dos pedidos, o GSI argumentou que os registros dos visitantes do Palácio do Planalto são dados pessoais, razão pela qual a LGPD impediria a sua divulgação. Depois, em esclarecimento à Controladoria-Geral da União (CGU), o órgão mudou o argumento para a negativa e afirmou que “a divulgação dos nomes de visitantes às instalações da Presidência da República, da Vice-Presidência da República e das residências oficiais traz prejuízo para a segurança presidencial”. A justificativa foi apresentada após o próprio GSI ter liberado, em julho de 2020, essa mesma informação em resposta a um pedido anterior.

Nas outras sete solicitações dessa natureza negadas pelo GSI, a Controladoria-Geral da União decidiu que os dados deveriam ser disponibilizados. Em um dos pedidos, de dezembro de 2020, foram solicitados dados de entrada e saída de seis pessoas no Palácio do Planalto, incluindo três filhos do presidente cujo trabalho principal é a atividade parlamentar (um é senador, um é vereador e um é deputado federal). O GSI se valeu dos artigos 6º e 7º da LGPD, que falam sobre princípios e requisitos para tratamento de dados, para não repassar as informações.

Esses episódios mostram que, mesmo com reiteradas avaliações da CGU de que as informações são públicas, o órgão continua descumprindo a lei e agredindo, em especial, os fundamentos que dão sustentação à própria LGPD. Outro exemplo são os dados de proprietários rurais com terrenos registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Esses dados ajudam a identificar, por exemplo, pessoas e/ou empresas que estejam ocupando irregularmente terras indígenas ou reservas florestais, que deveriam ser protegidas. Além da LAI, a publicidade desses dados já era obrigatória por força do art. 4º, inciso I, da lei federal 10.650/2003, que diz que todas as informações sobre os procedimentos de licenciamento ambiental devem ser disponibilizadas ao público em até 30 dias. Entretanto, em 12 pedidos analisados pela Fiquem Sabendo, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e até a CGU negaram o acesso a essas informações, alegando que a divulgação violaria a LGPD.

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Os casos não se limitam ao governo federal. A Procuradoria-Geral do Estado de Mato Grosso, por exemplo, negou acesso a comprovantes apresentados por procuradores para recebimento de verbas indenizatórias, alegando que continham informações pessoais. O controle social dos gastos públicos é um dos pilares de uma sociedade democrática, e é inadmissível que seja confundido com a privacidade de indivíduos.

Além das negativas com base na LGPD, o governo tem usado a nova legislação como estratégia para dificultar ou impedir o acesso por outros fundamentos. A LAI prevê a necessidade de “trabalho adicional” como motivo válido para negar acesso à informação. Isto acontece, por exemplo, no caso de os documentos solicitados ainda não terem sido digitalizados ou sistematizados e, para atender ao pedido, o órgão precisaria mobilizar uma grande quantidade de servidores por muitas horas, exclusivamente para uma única demanda.

Quando a LGPD por si só não sustenta a negativa, o órgão alega necessidade de “trabalho adicional” para tarjar as informações pessoais contidas nos documentos e, assim, se adequar à nova lei. Essa estratégia foi utilizada pelo governo para impedir o acesso aos relatórios de fiscalização de trabalho análogo à escravidão, essenciais para o combate e erradicação do trabalho escravo no Brasil e até então divulgados pelo poder público. O governo se recusou até mesmo a dizer o nome e CNPJ das empresas flagradas com indícios de terem empregado trabalho escravo.

Além da LAI, a publicidade dessas informações é assegurada pela Lei do Governo Digital, que diz que órgãos públicos devem divulgar na internet sanções administrativas aplicadas a pessoas, empresas, organizações não governamentais e servidores públicos. Vale ressaltar que a LAI já previa a proteção de informações pessoais no artigo 31, como a restrição de parte do número do CPF de beneficiários de pensão. Dessa forma, era possível analisar os dados sem correr o risco de computar homônimos e ao mesmo tempo proteger o dado pessoal, sem comprometer o controle social.

Neste ano vimos casos de informações claramente públicas, como o processo administrativo que absolveu o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, serem consideradas pessoais protegidas sob o art. 31. O que há de pessoal em um processo administrativo referente a um servidor público, sobre suas funções na esfera pública? Além das solicitações de informações negadas, existe ainda o problema dos dados abertos retirados de circulação pelo poder público sem nenhum aviso ou reflexão.

Em decisão interna pautada pela LGPD, o Ibama retirou do Portal Nacional de Licenciamento Ambiental os arquivos dos empreendimentos licenciados. Na esfera municipal, a Prefeitura de São Paulo parou de disponibilizar a base de dados do IPTU. Por mais nobres que sejam as intenções de cumprimento da LGPD, é preciso uma reflexão séria sobre dados que possuem funções centrais em investigações sobre corrupção, danos ambientais e outros problemas crônicos que demandam jornalismo baseado em dados.

A aplicação equivocada da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais não pode servir de subterfúgio para enfraquecer a Lei de Acesso à Informação e, assim, minar a transparência pública. Ambas as leis fazem parte do ordenamento jurídico brasileiro e devem ser aplicadas pelos agentes públicos de forma harmônica. A interpretação da LGPD deve ser orientada pelos seus fundamentos e não por artigos isolados, utilizados de forma conveniente aos interesses de fechamento de informações de interesse público. Isso exigirá esforço cívico e atenção da comunidade jurídica e política no Brasil.

Léo Arcoverde
Fiquem Sabendo

Maria Vitória Ramos
Fiquem Sabendo

Rafael Zanatta
Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa

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