Na quinta e última entrevista da série especial “Diálogos COP30: direitos digitais e justiça climática”, conversamos com Joara Marchezini, assessora de projetos do Instituto Nupef, onde atua na intersecção entre direitos humanos e tecnologias da informação e comunicação.


Joara também é uma das seis representantes eleitas do público no Acordo de Escazú, tratado internacional que aborda o acesso à informação, a participação e o acesso à justiça em temas ambientais.

Na conversa, ela fala sobre a importância da interdisciplinaridade entre direitos digitais e ambientais, a proteção de defensores e defensoras de direitos humanos, a necessidade de ampliar o letramento digital e a conectividade em regiões periféricas e amazônicas, além das expectativas para a COP30, primeira Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas a ser realizada em um país da região amazônica.

Data: Para começar, conte um pouco sobre o seu trabalho e sobre o Instituto Nupef.

Joara: Eu sou Joara Marchezini e trabalho no Instituto Nupef, que tem 20 anos de atuação na intersecção entre direitos humanos e tecnologias da informação e comunicação. Pensamos como essas tecnologias podem apoiar a resiliência e os processos de luta das comunidades em prol da justiça ambiental e de outros direitos humanos.

No Nupef, sou assessora de projetos e atuo na parte técnica e de projetos, principalmente em projetos de acesso à informação, meio ambiente e rádios comunitárias, e também em torno do Acordo de Escazú. Minha experiência é mais voltada para o acesso à informação e ao meio ambiente. Além disso, sou uma das seis representantes eleitas do público no Acordo de Escazú, que trata do acesso à informação, participação e acesso à justiça em temas ambientais. É a partir desse lugar que eu falo.

Data: Você pode contar um pouco mais sobre o Acordo de Escazú e o movimento em torno da sua implementação no Brasil?

Joara: O Acordo de Escazú é um tratado sobre acesso à informação, participação e acesso à justiça em temas ambientais. Ele é o primeiro acordo mundial a ter disposições específicas para proteger defensores e defensoras de direitos humanos em temas ambientais. É um acordo válido para a América Latina e o Caribe e, já são mais de 15 Estados Parte, se não me falha a memória, são 17 ou 18.

O Brasil assinou o acordo, mas ainda não o ratificou. O processo de ratificação está parado no Congresso, na Comissão de Relações Exteriores, há mais de dois anos, mesmo com parecer favorável do relator, o deputado Amom Mandel, do Amazonas. Esse é o status jurídico do acordo no Brasil hoje.

O movimento brasileiro em defesa do Acordo de Escazú é formado por organizações e pessoas que atuam pela ratificação e pela divulgação do tratado, para que mais pessoas conheçam e possam defendê-lo. Também visamos a participação da sociedade brasileira nas estruturas do acordo, que é único justamente porque prevê mecanismos de participação social dentro de sua própria governança. Isso é fundamental, já que estamos falando de acesso à informação, participação e justiça.

Falando da relação entre o acordo e os direitos digitais, há várias linhas. Eu destacaria três principais. A primeira é a proteção de defensores e defensoras. Todo o sistema de proteção precisa considerar a vida online e offline das pessoas, com um olhar holístico. Quando falamos de ameaças, muitas vezes pensamos apenas na violência física, sem relacionar isso à vulnerabilidade digital – como a exposição de dados pessoais e comunicações que podem colocar essas pessoas em risco.

A segunda é a infraestrutura. O acesso à internet e à comunicação impacta diretamente a capacidade de articulação das comunidades, de fazer incidência e de comunicar o que desejam para outros espaços. O Instituto Nupef trabalha muito nessa linha, especialmente com rádios comunitárias.

E a terceira é a circulação da informação. Os mecanismos de participação – audiências públicas, consultas, leitura de documentos – dependem da estrutura online e do letramento digital. Muitas vezes, o acesso à informação é limitado não só pelo que o governo publica, mas também pelo que as pessoas não conseguem acessar, o que alimenta boatos e desinformação, especialmente em temas ambientais.

Data: Além desses pontos, quais temas você considera essenciais para fortalecer essa relação entre direitos digitais e ambientais?

Joara: Eu vejo essa relação a partir da perspectiva dos direitos humanos, que são interconectados e indivisíveis. Profissionais dessas duas áreas atuando em conjunto é, para mim, o único caminho possível para responder a problemas complexos.

A interdisciplinaridade é essencial. Os profissionais precisam dialogar, trocar informações e compartilhar experiências para que as respostas sejam adequadas. Muitas vezes, é a partir desse contato que conseguimos entender o contexto de uma comunidade ou chegar até ela. Essa troca fluida é fundamental, especialmente quando falamos em emergência climática.

Data: E qual a importância da colaboração entre profissionais do Direito e da área ambiental?

Joara: Acho que há uma necessidade cada vez maior de nos apoiarmos como sociedade civil, principalmente num momento em que há cortes de recursos humanos e financeiros. Se não colaborarmos e não promovermos articulações de apoio mútuo, dificilmente teremos bons resultados.

Um exemplo claro é o próprio Congresso e o atual modelo de destruição de pacotes ambientais e do sistema de proteção ambiental. Precisamos atuar em conjunto – sociedade civil, especialistas, pesquisadores e comunidades – porque no fim do dia tudo está interconectado. Se nos isolarmos ou competirmos entre nós, perderemos muito mais.

Data: Que desafios você enxerga nessa conexão entre direitos ambientais e digitais?

Joara: Os direitos digitais ainda não são tão fáceis de explicar. O acesso às tecnologias e o conhecimento sobre essas ferramentas é muito restrito. Embora todos usem o Google, o ChatGPT ou outras ferramentas, a maioria não entende o que há por trás delas: a infraestrutura, os atores, os jogos de poder.

Isso acaba afastando as pessoas no geral, talvez porque usamos uma linguagem muito técnica e falta letramento digital mais amplo na sociedade. Eu costumo lembrar de quando trabalhava com a Lei de Acesso à Informação: durante anos era difícil explicar o que ela era, até que surgiu o tema do sigilo de 100 anos. De repente, as pessoas passaram a entender que existia uma lei, prazos, formas de acesso e até mecanismos para quebrar o sigilo.

Esse é um exemplo de como, quando conseguimos nos comunicar fora da nossa bolha, com outro tipo de linguagem, o impacto é muito maior. Precisamos falar sobre direitos digitais e ambientais com uma linguagem acessível. Muitas vezes estamos em busca do mesmo objetivo, mas não conseguimos dialogar tanto quanto deveríamos.

Data: Que outros desafios você destacaria, pensando também na COP30?

Joara: Há vários. Linguagem, tempo, ritmo. Estamos todos muito imersos em nossas pautas, e falta esse olhar integrado. A COP30, sendo no Brasil, é uma oportunidade para ampliarmos as discussões e abordarmos temas sob outras perspectivas.

A conferência costuma seguir uma agenda pré-definida, mas precisamos pensar de forma mais ampla, buscando novas soluções para os mesmos problemas. Como garantir proteção a defensores, melhorar a comunicação com comunidades ou ampliar o acesso à informação? Publicar algo na internet não é suficiente; é preciso dar um passo além e usar outros mecanismos para que essa informação chegue de fato às pessoas.

Data: E quais são as suas expectativas para a COP30?

Joara: As expectativas são altas. É a primeira COP sediada em um país da região amazônica. Para as organizações da América Latina e do Caribe, no geral, é uma oportunidade real de estar nesse espaço.

Mas é importante dizer que a COP ainda é muito elitista. Poucas pessoas conseguem participar, seja por questões financeiras, de idioma ou de acesso. Precisamos nos articular para que essa oportunidade em território nacional seja aproveitada ao máximo.

O cenário, porém, é difícil. A aprovação do PL da Devastação mostra o quanto ainda estamos distantes de um arcabouço adequado de proteção ambiental. Vemos retrocessos enormes, e até situações como a vivida pela ministra do Meio Ambiente, que enfrentou misoginia e racismo em um espaço público. Não precisamos dar palco a isso, mas precisamos cobrar que esses espaços sejam respeitosos e progressistas para aquilo que é de interesse nacional, e não de pessoas e grupos específicos.

A COP no Brasil é uma janela de oportunidade, mas também um grande desafio. Se o país quer sediar uma conferência climática, precisa fazer sua lição de casa: ratificar o Acordo de Escazú e reforçar seu compromisso com a proteção ambiental.

Data: E quais são os temas prioritários para o Instituto Nupef nesta COP?

Joara: Para nós, a COP é uma oportunidade de discutir infraestrutura de comunicação em regiões mais afastadas do eixo Rio-São Paulo, especialmente na Amazônia. Muitas vezes pensamos na Amazônia apenas como floresta, mas existem grandes cidades e núcleos urbanos na região. Precisamos olhar para essa diversidade.

Queremos debater qual é a infraestrutura ideal para receber uma COP e, principalmente, o que fica depois que o evento termina. É preciso investir em uma infraestrutura permanente e respeitosa. Sabemos, por exemplo, que satélites de baixa órbita, como o Starlink, têm sido usados como “solução emergencial”, mas isso não pode ser definitivo. Precisamos de planos estruturais e sustentáveis.

Além disso, defendemos a ratificação do Acordo de Escazú e a criação de sistemas de resposta rápida a desastres climáticos. É essencial pensar em como a comunicação funciona durante emergências, pois esses eventos são cada vez mais frequentes.

Data: Você acredita que a COP30 será um espaço mais resolutivo?

Joara: Eu acredito na política como forma de resolver diferenças e avançar em propostas. Acredito que o diálogo com o poder público é o único caminho, ou pelo menos o mais rápido. Se existir vontade política o resultado vem mais rápido.

Tenho esperança de que a COP traga resoluções positivas. Existe uma expectativa grande sobre o Brasil como liderança do Sul Global. Não podemos ter a primeira COP na Amazônia com resultados negativos. É urgente obter respostas concretas, e há muito em jogo, inclusive politicamente, por ser um ano pré-eleitoral. Essa é uma janela importante para pressionar o governo e obter avanços reais.

Data: E qual é o papel das tecnologias na promoção da justiça climática?

Joara: A tecnologia não é neutra. As escolhas que fazemos ao adotá-la dizem muito sobre o que queremos como sociedade. No Instituto Nupef, priorizamos tecnologias sustentáveis, acessíveis e replicáveis.

Quando falamos de justiça climática, lembramos que as pessoas mais afetadas pela crise climática são as que menos contribuíram para ela. A tecnologia não pode ser mais um fator de desigualdade. Ela deve ser usada para reduzir vulnerabilidades e promover reparação histórica.

É preciso discutir a infraestrutura, as políticas públicas e as soluções que realmente sirvam às comunidades, sem reforçar sistemas elitistas.

Data: Você gostaria de acrescentar algo?

Joara: Sim. Acho importante falar sobre o processo de tomada de decisão. O Acordo de Escazú trata justamente de acesso à informação, participação e acesso à justiça nas decisões ambientais.

Para que as decisões sejam justas e inclusivas, precisamos pensar na infraestrutura. Não basta colocar uma pessoa na sala e esperar que ela brilhe se o contexto é desigual, machista ou sem estrutura adequada para essa participação. Quando falamos de acesso à informação e de incidência, é fundamental pensar em como usar as tecnologias para fortalecer as pessoas e garantir que tenham mais ferramentas para alcançar os resultados que desejam.

Sobre Joara Marchezini

Joara Marchezini é assessora de projetos no Instituto Nupef, que tem duas décadas de atuação na intersecção entre direitos humanos, meio ambiente e tecnologias da informação e comunicação. Joara é também uma das seis representantes eleitas do público no Acordo de Escazú, tratado internacional sobre acesso à informação, participação e acesso à justiça em temas ambientais.

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