Na segunda entrevista para a nossa série especial “Diálogos COP30: direitos digitais e justiça climática”, conversamos com Antônio Laranjeira, jornalista premiado por reportagens investigativas sobre temas como perdas e danos ambientais, ciência e cidadania. O entrevistado também atua em temas como a desinformação na política e transparência de dados para a justiça social. 

Na entrevista abordamos tópicos como conectividade em territórios periféricos, geotecnologias e o uso de dados no Brasil. 

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Data: Quais você considera os principais temas de interação entre direitos digitais e direitos ambientais?

Antônio: A relação entre direitos digitais e direitos ambientais é bastante estreita, encaro isso diretamente na minha pesquisa sobre as plataformas de mapas on-line e mapeamentos colaborativos. O direito de existir no mapa, um endereço físico disponível na web e a liberdade de editar os mapas são questões nas quais o ambiental e o digital se entrelaçam. Destaco três pontos principais: 1) Soberania sobre dados territoriais: quando uma comunidade decide gerar seu próprio mapa online e disputar a narrativa sobre um território, ocupando as plataformas digitais com seu conhecimento local; 2) Prevenção de perdas e danos ambientais: quando um grupo mapeia problemas reais para mitigar riscos relacionados a determinados fenômenos da natureza; 3) Visibilidade de vazios cartográficos: quando mutirões voluntários realizam o mapeamento de áreas consideradas até então como vazios, lugares onde antes os mapas online não ofereciam cobertura informacional. Em resumo: comunidades organizadas exercem sua cidadania quando controlam quais dados são colocados no mapa, como esses mapas são validados e sob quais licenças de uso (copyright ou creative commons) são compartilhados via web de maneira íntegra. Esses gestos têm garantido maior equidade na representação territorial em plataformas como Google Maps e OpenStreetMap.

Data: Como você tem visto os principais desafios no avanço das discussões sobre os direitos digitais e ambientais?

Antônio: Identifico três desafios recorrentes: 1) Conectividade em territórios periféricos: embora as comunidades tenham conexões via web, muitas só conseguem sincronizar dados esporadicamente devido à falta de internet estável. Essa limitação de comunicação digital ainda tem atrasado denúncias de desmatamento e torna o uso de aplicativos offline imprescindível, mas insuficiente. Sem sincronização imediata, os órgãos de fiscalização recebem informações com atraso, comprometendo a proteção ambiental. 2) Validação de mapeamentos comunitários: frequentemente os órgãos governamentais exigem “cadastro oficial” ou “metodologia homologada” para aceitar essas informações em processos de licenciamento ou demarcação. Isso impõe uma barreira burocrática que desestimula iniciativas locais, invalidando quem produz dados de alta qualidade sem respaldo do governo. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre essas duas perspectivas, a partir de políticas públicas que cooperem com a validação dos mapas feitos pela sociedade. 3) Assimetria entre plataformas de mapas: enquanto o Google Maps tende a atualizar primeiro áreas de interesse comercial e proprietário, no OpenStreetMap os mapas são atualizados quando há uma mobilização coletiva de interesse voluntário. Em favelas do Rio de Janeiro, por exemplo, o mapa só incorporou dados críticos (drenagem, rotas de fuga, pontos de saúde) porque moradores e voluntários locais fizeram mutirões. Esses três desafios alimentam as discussões sobre desigualdade digital.

Data: Na sua opinião, a COP30 será um espaço privilegiado para esses debates?

Antônio: Desde a COP29 a comunidade internacional debate o uso de tecnologias colaborativas para alcançar os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), mas ainda sem o protagonismo direto das comunidades envolvidas. Para a COP30, acredito que teremos a chance de reivindicar que comunidades locais e financiadores estejam em diálogo e valorizem mutirões colaborativos de mapeamento. São reivindicações urgentes; caso contrário, continuaremos falando sobre o clima sem dados confiáveis sobre a malha urbana, os solos, as águas, os ares e as vegetações de cada parte da Terra. Aqui estamos, de fato, falando sobre uma questão global. Vários debates sobre o aquecimento global já foram superados e também as limitações de tecnologias geoespaciais livres. Acredito que essa edição da conferência pode ser histórica não pelos debates efusivos (já esperados), mas pelas decisões efetivas sobre fundos para investimento econômico (tão mais esperado) em tecnologias que assegurem o futuro sustentável para o meio ambiente em todas as etapas de um produto ou serviço digital e para todas as pessoas da Terra. O planeta não pode esperar a COP31 para que alguns compromissos globais sejam cumpridos.

Data: Quais as suas expectativas para a COP30 em relação às movimentações que têm acontecido da sociedade civil? Será um espaço mais aberto ao diálogo e mais resolutivo?

Antônio: Esse ano o protagonismo ampliado de vozes periféricas ao redor do mundo, o diálogo mais direcionado com órgãos financiadores e novos compromissos técnicos e financeiros firmados serão três movimentos importantes para observar na COP30. Isso é justificado não apenas porque o evento ocorre no Brasil, mas também porque estamos atravessando uma “quadra da história” que exige um olhar atento aos direitos de povos marginalizados e aos territórios sentenciados ao “fim do mundo”. Especialmente na floresta amazônica, esse “fim do mundo” chega antes das possibilidades de “pensar outro mundo”. Esta conferência pode catalisar um processo de pensamento com geotecnologias que não apenas informem, mas também transformem nossa relação com a Terra a partir da perspectiva ecológica de cada território. A COP no Brasil, portanto, é um momento importante na história da conferência, eu diria um ponto de inflexão entre consolidar a interlocução com comunidades para “hoje” ou voltar a realizar compromissos para “amanhã”.

Data: Que tipos de acordos você espera que possam ocorrer?

Antônio: Difícil ser otimista e objetivo nessa resposta, tratando-se do Brasil, campeão de crimes ambientais no mundo. Eu estimo que três acordos envolvendo geoinformação, direito e meio ambiente devem ser prioridade na COP30:

O fortalecimento da OpenStreetMap Foundation: alinhada com as portarias de órgãos ambientais do Brasil (como Ibama, ICMBio e Funai), a organização pode ser ativa a fiscalização ambiental com base no mais alto padrão de integridade de dados geoespaciais do mundo na atualidade, ouvindo cada população local com mobilizações para os mutirões de mapeamento (em campo e remotos).

A criação de institutos regionais de inovação em geotecnologias: laboratórios de dados (dry labs) onde desenvolvedores e organizações da sociedade civil possam colaborar para aperfeiçoar as redes de monitoramento e vigilância (os observatórios e salas de crise) compostos por diversas partes interessadas (sociedade, cientistas, governos e jornalistas).

A priorização das licenças opensource: os países devem investir em sensores de baixo custo e alta escalabilidade com base em conhecimentos populares e científicos do Sul Global, uma aliança inter-regional na geopolítica atual. Essas decisões dariam base formal ao que as comunidades já vêm fazendo na prática, traduzindo direitos digitais em mapas com dados abertos para fins socioambientais e promovendo impacto com tomadas de decisão mais eficazes, efetivas e eficientes para quem vive nas periferias.

Data: E como você tem visto a relação entre justiça climática e tecnologias digitais?

Antônio: Da perspectiva interdisciplinar que tenho desenvolvido em minhas pesquisas (entre a Geografia, a Computação e a Comunicação), a justiça climática e as tecnologias digitais convergem de modo materializado quando comunidades passam a ser fontes de dados geoespaciais, transformando a geoinformação em evidência para negociação política e em mecanismo direto de proteção socioambiental. Nesse sentido, temos duas escolhas: mapear junto com comunidades humanas ou mapear à distância em nome daqueles que não podem mapear a si mesmos. Seja qual for o procedimento escolhido, produzir o próprio mapa é um ato de direito e um gesto de justiça, um modo de autodefesa e litigância para o território e seus habitantes em disputas jurídicas e políticas. 

Isso está em contradição com o “imperativo da centralidade” regido por big techs, empresas que estão no “centro das causas” das mudanças climáticas. Em dialética, as periferias das maiores cidades do mundo estão, na maioria das evidências, no ”centro dos efeitos”. Quem vai votar pelo direito de estar no mapa e fazer a escolha do processo de mapeamento autônomo do seu território? Esse tipo de compromisso político e econômico é um “voto vazio” do lado de fora dos estandes e corredores da COP30, uma espécie de “Zona Vermelha”, por assim dizer. Acredito que aqueles que concordam comigo estarão na Zona Amarela (yellow zone), talvez na Zona Verde (green zone) e dificilmente estarão na Zona Azul (blue zone) na próxima edição da COP. É necessário aqui visualizar a “planta baixa da COP30” e entender que existem “fronteiras credenciais”: nem todos podem circular por todas as zonas, como nem todos podem opinar sobre o futuro nesta estimada conferência global.

Sobre Antonio Laranjeira

Antônio Heleno Caldas Laranjeira é jornalista freelancer, premiado por reportagens investigativas sobre temas como perdas e danos ambientais, ciência e cidadania, desinformação na política e transparência de dados para a justiça social. Analista de dados com passagens por think tanks e institutos de pesquisa e ensino no Brasil, participou de projetos de inovação, ciência e tecnologia aplicadas. Atua também como consultor digital, dedicado ao enfrentamento de desafios relacionados à inovação e disrupção em redes e cadeias produtivas, além de estratégias de comunicação de impacto para negócios de diversos modelos. Pesquisador, doutorando em Comunicação e Culturas Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mestre em Comunicação e Sociedade pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Sobre a série “Diálogos COP30: direitos digitais e justiça climática”

A nova série especial da Data Privacy Brasil tem o objetivo de ouvir vozes diversas sobre a interface entre a agenda climática e os direitos digitais. O novo projeto surge em um ano único: a realização da primeira Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30) no Brasil, que está prevista para ocorrer entre os dias 10 e 21 de novembro de 2025 na cidade de Belém – Pará. As entrevistas acontecem no âmbito da área de “Assimetrias e Poder” da Data e terão a participação de uma multiplicidade de especialistas no tema.

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