Imagine ser indiciado pelo crime de roubo nove vezes ao longo de cinco anos e ser inocentado em todas as ocasiões. Este é o caso de Tiago Vianna Gomes, que teve sua foto mantida no álbum de suspeitos da 57ª Delegacia de Polícia Civil de Nilópolis no Estado do Rio de Janeiro, uma compilação de fotos com rostos que, de alguma maneira, foram considerados potenciais criminosos pela repartição policial.

O caso de Tiago é um exemplo de como essa prática viola os direitos constitucionais à intimidade (art. 5º, X) e presunção de inocência (art. 5º, LVII): foi denunciado pelo Ministério Público pelo crime de roubo por 9 vezes, sendo 8 delas na Comarca de Nilópolis, e inocentado em todos os processos. Em momento algum a vítima soube o motivo pelo qual sua foto foi elencada no álbum, apenas reiteradamente investigado por crimes que não cometeu. O Data Privacy entrevistou Tiago e outros atores sobre os álbuns de suspeitos em uma videorreportagem sobre o tema, que pode ser assistida aqui.

Diante de flagrante injustiça, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro impetrou mandado de segurança requerendo a exclusão da foto de Tiago do álbum de suspeitos

[1] [1] Disponível em: https://defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/11633-Homem-tera-sua-foto-retirada-de-album-de-suspeitos-em-Nilopolis. Acessado em 06 de outubro de 2021. 

. Em resposta ao pedido, no dia 09 de setembro de 2021, o juiz Alberto Fraga  (1ª Vara Criminal da Comarca de Nilópolis) determinou que em até 48h a foto fosse retirada do cadastro de suspeitos da 57ª DP, vedando-se a  exibição  de  sua  fotografia  em qualquer  procedimento  referente  a  qualquer  crime  em apuração  e  que  tenha  ocorrido  dentro  do  limite territorial de Nilópolis.

A decisão liminar

No mérito, o juiz se baseou na Lei Geral de Proteção de Dados ao sustentar que “a  utilização  de  uma  imagem  para  fins  de segurança  pública  deve  ser  feita  através  de  medidas proporcionais,  com  a  observância  do  devido  processo legal e com a garantia dos direitos do seu titular”. Nesse sentido,  “a criação  do  álbum  de  suspeitos  deve ser tratada como  ato administrativo da autoridade policial, sendo que toda foto que ali venha a ser inserida deve ter sua inserção baseada em decisão fundamentada, que observe o devido processo  legal e  na  qual  restem  resguardados  os interesses individuais envolvidos.” 

A decisão foi considerada uma grande vitória para a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que assumiu o protagonismo no combate às injustiças perpetradas pela utilização do reconhecimento fotográfico sem a observância de salvaguardas mínimas que assegurem os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Em caso semelhante também no Rio de Janeiro, a Defensoria Pública impetrou habeas corpus em favor de um rapaz que foi preso através do reconhecimento das vítimas em um álbum fotográfico da polícia após um roubo na cidade de Macaé. Em fevereiro de 2021, o caso chegou ao STJ, ocasião na qual o ministro Nefi Cordeiro concedeu o habeas corpus diante da precariedade da prova. Para o ministro, o simples reconhecimento fotográfico do acusado pode facilitar o erro da condenação

[2] [2] Disponível em: https://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/11057-STJ-absolve-acusado-apos-reconhecimento-fotografico-Ja-e-o-3%C2%BA-caso. Acessado em 06 de outubro de 2021.

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A exclusão de imagens enquanto direito à proteção de dados pessoais

Considerado paradigmático, o caso demonstra a problemática  em relação à ausência de regulação do ciclo de vida dos dados, perpetuando por tempo indefinido o ciclo de injustiças. Na prática, as fotos não são atualizadas de modo que o indivíduo é absolvido diversas vezes, mas ainda assim a foto é mantida no álbum de suspeitos, como aconteceu com Tiago. Além disso, não há nenhuma regulamentação específica sobre a formalização desses álbuns em delegacias policiais como qualidade e resolução das fotos, tamanho e ângulo retratado. Sem saber a origem das imagens, a definição de “suspeitos” é feita de forma arbitrária, seja através de fotos em redes sociais ou compartilhamento informal de arquivos entre policiais, como em aplicativos de mensagens.

Em desacordo com o art. 226 do Código de Processo Penal, os álbuns de suspeitos são mantidos sem a autorização do acusado e de acordo com o juiz que determinou a exclusão do rosto de Tiago no álbum da 57ª Delegacia do RJ, a foto de qualquer pessoa tirada em sede policial somente pode ser utilizada em álbum de suspeitos mediante a autorização do fotografado, que tem, pela Constituição, o direito de não se auto incriminar. 

Caminhos para regulamentação

Diante da ausência de regulamentação específica, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu Grupo de Trabalho para elaborar proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal em processos criminais e a sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário, com o objetivo de evitar a condenação de pessoas inocentes.

[3] [3] Disponível em: https://www.stj.jus.br/internet_docs/biblioteca/clippinglegislacao/Prt_209_2021_CNJ.pdf. Acessado em 06 de outubro de 2021. 

O Grupo de Trabalho do CNJ, que iniciou a discussão em outubro de 2021, atualmente conta com a participação de quatro membros da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

[4] [4] Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4178.

que têm desempenhado um papel fundamental na luta travada para que se respeite os direitos e garantias constitucionais e as jurisprudências do Superior Tribunal de Justiça

[5] [5] Recentes decisões da Quinta e Sexta Turmas do Superior Tribunal de Justiça que determinam a observância das garantias mínimas previstas no art. 226 do Código de Processo Penal para a realização do reconhecimento de pessoas, de modo a se evitar a condenação de inocentes (HC nº 652.284/ SC, de relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, e HC nº 598.886/SC, de relatoria do Ministro Rogério Schietti, respectivamente)

quanto aos reconhecimentos por fotos.

A atuação litigiosa que articula o direito fundamental à proteção de dados pessoais é fundamental para a garantia da presunção de inocência nos casos em tela. Entender as estratégias adotadas pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro pode auxiliar na regulamentação do reconhecimento fotográfico a partir da dogmática principiológica da LGPD. 

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