Entre os dias 25 e 29 de abril, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) promoveu a e-commerce week de 2022, importante evento multissetorial,  situado na intersecção entre tecnologia, comércio internacional e desenvolvimento. A edição deste ano contou com formato híbrido – aberto para o público – e teve como mote “Dados e Digitalização para o Desenvolvimento”, com o título “em si”  já o apresentando como evento-chave para, entre muitos outros campos, o ativismo em direitos digitais. 

Na posição de ouvinte, a equipe de pesquisa da Associação Data Privacy Brasil acompanhou diversas sessões do evento. Entre outros pontos, diversos painéis sublinharam as capacidades restritivas do regime internacional de comércio sobre a agenda de direitos digitais, tanto em nível nacional quanto global. Mais do que isso, muitas das discussões ligaram o alerta e reforçaram a necessidade das organizações não-governamentais (ONGs) de direitos digitais incidirem sobre as negociações internacionais envolvendo comércio na economia digital.

Nesse sentido, preparamos este blog post para apresentar a e-commerce week, contextualizar brevemente o papel que a UNCTAD vem desenvolvendo na agenda de comércio, desenvolvimento e dados e destacar alguns pontos que foram discutidos na edição deste ano. 

A e-commerce week

A primeira edição da e-commerce week da UNCTAD foi realizada em 2015. Desde então, o evento vem ocorrendo anualmente, a cada ano com maior participação de múltiplas partes interessadas. Embora a edição de 2022 tenha colocado os dados no protagonismo das discussões, desde 2015 essa questão orbita na atmosfera do evento. 

A edição de 2015, por exemplo, primeiramente abordou as leis de proteção de dados em uma perspectiva de harmonização de direitos cibernéticos. No ano seguinte, a e-commerce week de 2016 dedicou duas sessões para explícitamente tratar da interface entre comércio e padrões regulatórios sobre proteção de dados pessoais. Já a partir de 2017, com o evento se consolidando no campo de comércio digital, o número de sessões, inclusive as relacionadas com proteção de dados, deram sucessivos saltos, assim como o evento evoluiu como uma plataforma de reunião das principais partes interessadas da academia, sociedade civil, governo e setor privado. Ainda sem dados relativos à e-commerce week de 2022, tem-se como exemplo a edição de 2018, na qual, conforme relatório publicado pela organização após o evento, dos cerca 1180 de participantes registrados, 33% estava representando a sociedade civil e cerca de 41% representavam os governos. 

A UNCTAD na agenda de comércio, desenvolvimento e dados

A UNCTAD é um órgão de caráter político parte da Assembleia Geral da ONU, que a difere da Organização Mundial do Comércio (OMC), por exemplo, que como organização especializada do sistema ONU, possui mandato deliberativo, no caso, sobre regras internacionais de comércio. Nesse formato, desde quando lançada na década de 1960  por demanda dos países em desenvolvimento, a UNCTAD assumiu o papel de fornecer análises técnicas e de promover o diálogo contínuo entre governos, organizações intergovernamentais e não governamentais sobre questões atuais envolvendo comércio e desenvolvimento. Destaca-se, assim, como uma plataforma bem mais acessível para a participação da sociedade civil, do que outras esferas também envolvidas em questões de Economia Política Mundial, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a OMC, as quais são essencialmente ocupadas por atores governamentais. 

No campo de comércio e tecnologia a atuação da UNCTAD não é diferente. Além de promover reuniões e debates entre as diversas partes interessadas, o órgão vem se destacando pelo trabalho técnico com seguidos relatórios que debatem as transformações decorrentes do regime internacional de comércio em matéria de tecnologia na era digital. Assim, buscando debater com as negociações levadas na OMC e na OCDE e incluindo a perspectiva dos países em desenvolvimento nos debates. 

Um exemplo disso é o Relatório de 2021 “Cross-border data flows and development: For whom the data flow”. Esse trabalha com a interface de fluxos transfronteiriços de dados e desenvolvimento, acompanhada pelo noção sobre o caráter multidimensional dos dados, levantando o problema da distribuição desigual dos ganhos dos fluxos de dados e dos riscos e preocupações relacionados aos abusos decorrentes. 

 O Data Privacy Brasil na e-commerce week de 2022

Reconhecida a urgência de se debater no Brasil a interface entre direitos digitais e comércio, nesta edição a nossa equipe de pesquisa se organizou na cobertura e relatoria de 17 sessões da e-commerce week de 2022. O intuito para este ano foi acompanhar os debates que mais se relacionam com a agenda de proteção de dados pessoais, em especial a partir da perspectiva de atores do Sul-Global.

Um dos painéis de destaque foi o “Overcoming barriers to trust in cross-border data flows”, que contou com participação da diretora da Autoridade Nacional de Proteção de Dados brasileira, Miriam Wimmer. Acerca dos fluxos transfronteiriços de dados, Wimmer falou da importância de ter outras perspectivas para além de Estados Unidos e Europa, e buscar interoperabilidade enquanto mantém o alto nível de proteção aos titulares. Também apontou o desafio do acesso governamental aos dados, que é uma discussão complexa: quando os governos precisam acessar legitimamente os dados, podem enfrentar problemas como a localização de dados, dualidade posta há alguns anos no debate. A localização de dados é a prática exercida por alguns países onde todos os negócios que tratam dados pessoais devem armazená-los naquele território. Wimmer ainda questionou qual o melhor locus para esse debate, já que ele está ocorrendo tanto em arenas multissetoriais de governança da Internet, como em espaços multilaterais e de temas políticos mais tradicionais.

De acordo com Parminder Jeet Singh, diretor executivo da IT for Change, a localização de dados é uma reação à ausência de regulação para dados. Sua fala no painel Exploring a global framework for data governance argumentou que temos de falar de dados como recurso, e qual é essa necessidade, para então vermos qual regulação de governança de dados é necessária. Já a professora Ingrid Schneider, da Universidade de Hamburgo, colocou que a prática da localização de dados tem méritos como a cibersegurança e a proteção da privacidade e da espionagem por atores estrangeiros. Para ela, é preciso separar dados históricos, atuais, pessoais e não-pessoais – criando categorias, onde cada uma exige cuidados diferentes. Dados pessoais e sensíveis seriam os que mais demandam proteção. Schneider colocou que é preciso consenso sobre quais partes da vida são datificadas e quais não deveriam ser, assim, definir quais dados devem ser locais e quais as condições para isso.

Outro destaque foi o painel “How will current proposals for international e-commerce rules governing data flows affect digitalization for development?” , que contou com a moderação da Sofia Scasserra, pesquisadora da Transnational Institute e com importantes falas dos painelistas. De início, Deborah James, da Center for Economic and Policy Research (CEPR), sublinhou que é do interesse corporativo das big techs promover a celebração de acordos regionais de comércio para impor limites às regulações nacionais de diversos países em desenvolvimento. Na sequência, Deborah alertou que a arena de comércio não é democrática e que questões envolvendo dados deveriam ser debatidas em outros espaços. Em razão disso, continuou demonstrando preocupações sobre a participação de diversos países em desenvolvimento nas negociações plurilaterais da OMC sobre comércio eletrônico. Rashmi Banga, da UNCTAD, destacou que neste contexto é urgente que os países em desenvolvimento tenham consciência da importância de preservar espaço político para governar os seus próprios dados.  

A Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa segue atenta à agenda de dados e comércio, assim como ativa em ações de incidência e colaboração com atores nacionais e internacionais, a fim de que o diálogo seja cada vez mais inclusivo e construtivo.

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