Em 21 de abril de 2022, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos divulgou, em declaração conjunta com outros países membros da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), o estabelecimento do Global CBPR Forum. Esse recém criado círculo, que pode ser visto como um fórum sobre regras globais para promoção do fluxo transfronteiriço de dados, a princípio conta com Japão, Canadá, Coréia do Sul, Filipinas, Cingapura, Taipé Chinês (leia-se Taiwan) e Estados Unidos. Neste blog post, apresentamos brevemente esse mais novo fórum que interage diretamente com a agenda da Associação Data Privacy Brasil e sublinhamos alguns elementos que se colocam no plano de fundo desse anúncio.

O que seria o Global CPBR Forum?

A sigla CBPR que compõe o nome do Fórum remonta ao Sistema de Regras de Privacidade Transfronteiriça da APEC (Cross-Border Privacy Rules System, em inglês) (Sistema CBPR). Esse, por sua vez, se traduz como uma estrutura, criada inicialmente para as economias participantes no âmbito da APEC,  que regula a transferência de dados pessoais e promove a interoperabilidade entre os países membros do bloco facilitando o livre-comércio. Definido, então, como um arranjo voluntário em nível de país e baseado em responsabilidade, o sistema tem por base os princípios de privacidade da APEC, os quais conformam um nível básico de proteção a ser respeitado, ao invés de impor abrangentes obrigações em matéria de privacidade e proteção de dados.

A declaração de criação do Fórum, nesse sentido, estabelece entre os seus objetivos “estabelecer uma estrutura de certificação internacional baseado no sistema CBPR e no sistema de reconhecimento de privacidade para processadores (ao lado da CBPR, outra iniciativa da APEC sobre o tema)” e “promover a expansão e aceitação dos Sistemas Globais de CBPR globalmente para facilitar a proteção de dados e o livre fluxo de dados”. Mais do que isso, afirma que o fórum deve “buscar a interoperabilidade com outras estruturas de proteção de dados e privacidade”, apesar de a GDPR já ter demonstrado não ser adepta do CBPR da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico. Nesse formato, a declaração também leva o padrão CBPR para fora dos limites da APEC, prevendo que a participação deve ser aberta para novas jurisdições.

O Fórum em meio a interface Dados e Comércio

O anúncio feito pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos pode ser visto como mais um movimento do país norte-americano para influenciar e promover o livre fluxo transfronteiriço de dados por meio de arranjos de comércio. Dessa vez, diferentemente de outrora, a estratégia tomada pelo país não se deu na forma de negociações em torno de acordos de comércio – (mega)regionais ou bilaterais. Isso pode se dever, sobretudo, à crescente  da China e da União Europeia no campo.

Atualmente, o regime internacional de comércio se depara com três principais arquiteturas (Estados Unidos, União Européia e China) que se refletem em padrões das negociações. A China, apesar de movimentos domésticos que demandam ainda mais observação em matéria de regulação sobre privacidade e proteção de dados pessoais e da busca por entrar em acordos de comércio digital, ainda impera a estrutura de segurança cibernética que regula fortemente a Internet e todo ecossistema digital. Os Estados Unidos, por sua vez, adota uma postura bem oposta à chinesa, defendendo a liberalização da Internet, se valendo também do regime de comércio internacional para isso. A União Européia, de outro lado, resiste em negociar questões como o livre fluxo de dados por meio de arranjos de comércio e, com a GDPR, estabelece os direitos de privacidade e proteção de dados como direitos fundamentais.

Nesse contexto, há a percepção de que através do Fórum os Estados Unidos possa: (i) se voltar ao Pacífico, atendendo à estratégia de Biden e confrontando a China na região sem ter que se aproximar do CPTPP (Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica), o que potencialmente poderia esbarrar em resistências domésticas dos Republicanos; (ii) oferecer uma alternativa ao modelo europeu da GDPR que desde 2018 vem se firmando como padrão seguido por diversos países para proteção de dados pessoais.

Cabe comentar, que, como um dos principais arranjos jurídicos de regulação sobre fluxo transfronteiriço de dados, o Sistema CBPR é usualmente colocado em contrapartida ao padrão da GDPR sobre transferência internacional de dados por ser visto, sobretudo pelos Estados Unidos, como um conjunto de regras que mostra-se mais propício para os negócios, leia-se também interesses do Vale do Silício. Não por acaso o capítulo de comércio digital do Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA), assinado em 2018,  ampara-se explicitamente no Sistema CBPR da APEC.

O plano de fundo dessa estratégia

O contexto para esse movimento por parte dos Estados Unidos traz tanto uma continuidade histórica de priorização do comércio na governança da Internet, quanto uma urgência em dialogar com países que acabam se opondo à esfera de influência chinesa. O governo Biden tem retomado um discurso há tempos repetido pelos Estados Unidos sobre a manutenção de uma Internet livre e democrática (ainda que tome muitas decisões de modo unilateral).

No dia 28 de abril de 2022, foi lançada a Declaração sobre o Futuro da Internet, iniciada por Washington e aderida por cerca de 60 países, defendendo a proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. O documento não conta com apoio de países autocráticos e, indiretamente, se opõe a práticas como a localização de dados, comum em países menos democráticos onde se dá a obrigação do armazenamento de dados em servidores no território onde o serviço é prestado. Essa prática é vista pelo Norte Global como uma barreira ao comércio internacional, por dificultar um fluxo livre de dados, e é baseada na priorização da segurança e de tentativas de proteção contra espionagem.

Tais medidas poderiam ser sanadas, em parte, através de fortes leis de proteção de dados, o que traria maior adequação e segurança aos fluxos de dados. Além disso, a OMC conta com exceções em seus acordos de comércio e serviços sobre políticas públicas legítimas, as quais também chamam a atenção para a aplicação das leis de proteção de dados sobre o setor público. Por fim, o maior desafio nesse ecossistema é a harmonização de diferentes leis, o que é um dos objetivos da iniciativa do Fórum Global CBPR.

Os diálogos com iniciativas de governança de dados

A flexibilização favorável aos negócios do CBPR implica em uma potencial não adequação com a GDPR da União Europeia, que já se mostrou desfavorável aos padrões da APEC, nos quais o Fórum Global se baseia. O problema aqui seriam as poucas restrições acerca do uso de dados pessoais pelas empresas, possibilitando abusos. Dessa maneira, os Estados Unidos concretizam uma alternativa aos padrões europeus e suas influências globais, ao mesmo tempo em que pode ter sua influência questionada, já que o país norteamericano não possui lei federal para proteção de dados pessoais.

A atual configuração de rivalidade entre padrões e iniciativas de regulação envolvendo dados e comércio deve ser observada atentamente, tendo em vista também também a necessidade cada vez maior de interoperabilidade entre os regimes, Estados e setor privado. Nesse ponto, a OCDE já faz um diálogo multilateral, com algumas sugestões de sociedade civil e setor privado, acerca de políticas para uma governança de dados. Promover fluxos de dados transfronteiriços, preservando a confiança é um dos objetivos da atual fase do projeto Going Digital da organização.

A Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, que é membro ativo do comitê da sociedade civil da OCDE – CSISAC, permanece atenta aos trabalhos e mapeamento dos instrumentos e regimes de governança de dados pelas diferentes regiões do globo. Também seguimos acompanhando o futuro do Fórum CBPR e as dinâmicas que se instalarão diante das iniciativas de governança e fluxo de dados globais.

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