Os debates atuais sobre governança digital, em especial sobre Inteligência Artificial (IA), atravessam um momento decisivo no cenário internacional. No âmbito da ONU, as negociações avançam, mas com pouca abertura à participação de atores que historicamente moldaram a Internet como a conhecemos: a sociedade civil, a comunidade técnica e a academia. A aprovação recente de propostas como os Global Dialogues evidencia essa lacuna: trata-se de iniciativas entre Estados, sem mecanismos transparentes de consulta ou acesso de múltiplos stakeholders.

Esse desenho contrasta diretamente com a experiência consolidada do Fórum de Governança da Internet (IGF), que desde a sua criação na Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (WSIS) funciona como um espaço aberto, multissetorial e plural. O IGF, apesar de suas limitações em termos de capacidade decisória, sempre se destacou como um fórum em que governos, setor privado, sociedade civil, academia, e comunidade técnica têm voz em pé de igualdade. Ao marginalizar o IGF e privilegiar negociações intergovernamentais de bastidores, corre-se o risco de enfraquecer não apenas o princípio da governança multissetorial, mas também a legitimidade das políticas globais sobre tecnologias digitais, que hoje já evidenciam as disparidades políticas, econômicas, e sociais entre setores e países.

Esse processo de forum shifting, quando questões tradicionalmente discutidas em fóruns especializados migram para arenas da política internacional tradicional, já está sendo concretizado em novos arranjos multilaterais. Blocos como BRICS e G20, ainda que careçam de institucionalidade formal, passaram a reivindicar um papel estratégico no debate. Os BRICS, em particular, têm defendido que a regulação global de IA se concentre no sistema ONU, ao mesmo tempo que priorizam soberania digital e desconcentração econômica. Essa movimentação reforça a centralidade do multilateralismo estatal, mas não responde à necessidade de inclusão da diversidade de vozes e experiências que caracterizam o ecossistema digital. No caso dos blocos mencionados, as presidências rotativas determinam o quanto de engajamento da sociedade civil será possível durante os processos, o que varia muito ano a ano.

A WSIS, que completa 20 anos, está passando por um novo processo de negociação quanto a sua renovação, cujo texto consolidará a agenda e as diretrizes sobre governança digital dos próximos 10 anos. Dentre os muitos temas em jogo (governança de dados, Inteligência Artificial, sustentabilidade ambiental, conectividade, etc.), seu próprio ecossistema de governança ganha destaque. Assunto já antecipado pelo NetMundial+10, a multiplicidade de fóruns de discussão para governança da Internet e tecnologias emergentes (hoje focadas na IA) está não apenas fragmentando e dificultando a governança que parte de uma rede a princípio universal (a Internet), como também está necessitada de maior participação de atores não-estatais. 

E essa multiplicidade já ocorre dentro do próprio sistema ONU, com o próprio WSIS Forum competindo com o AI for Good, ambos organizados pela União Internacional de Telecomunicações (ITU). Demanda-se um papel formal nesse ecossistema para o Escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos (OHCHR), a partir do entendimento de que Direitos Humanos são transversais a todos os tópicos da agenda WSIS, incluindo Inteligência Artificial. Dentre as muitas propostas debatidas nesse processo, surge ainda o problema do financiamento, e de mecanismos que permitam operacionalizar na prática os investimentos necessários para alcançar tais objetivos. E dentro desse ecossistema, ainda há incerteza acerca de papéis da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), da Comissão de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento da ONU (CSTD), e do recente Escritório para Tecnologias Digitais e Emergentes da ONU (ODET). Isso sem falar no que ocorre fora do sistema ONU, como na OCDE, nas AI Impact Summits, no próprio BRICS, e nos blocos G20 e G7.

A história da governança da Internet mostra que o equilíbrio entre Estados e múltiplos stakeholders foi essencial para manter a rede aberta, segura e interoperável. Hoje, o cenário é bem mais complexo do que 20 anos atrás: existe uma forte dependência das sociedades para com as tecnologias, e seus impactos são sentidos em todos os setores. O próprio Estado se encontra internamente fragmentado, geralmente com diferentes órgãos e ministérios disputando a agenda digital. O grande setor privado, praticamente um ator a parte, aumenta essa dependência e atua, por muitas vezes, “fora das quatro linhas”. Para dificultar, a sociedade como um todo está culturalmente ligada a esses serviços privados que se tornaram vitais no funcionamento do cotidiano, ao mesmo tempo em que governos do Sul Global buscam uma soberania digital. Diversos atores dentro desses setores procuram, então, contrabalancear esse cenário com propostas regulatórias e um arcabouço de proteção de direitos, tentando levar um pouco dessa soberania também ao nível do indivíduo. 

Transferir a discussão de temas complexos como IA para espaços exclusivamente intergovernamentais significa renunciar ao legado do multissetorialismo. A sociedade civil, em especial no Sul Global, não pode ser reduzida a espectadora. Seu envolvimento é fundamental para assegurar que os marcos globais de governança digital não reforcem assimetrias de poder, mas sim avancem em direção à justiça social, à inclusão e ao respeito aos direitos humanos. Hoje, esses países em desenvolvimento possuem um papel fundamental de “alimentar” as tecnologias e recursos do Norte Global: desde a extração de minérios e recursos críticos à essas tecnologias, até a extração de dados pessoais diversos das populações que utilizam serviços financeiramente gratuitos, enquanto reguladores tentam contornar lobbies dessas próprias empresas para proteger minimamente direitos fundamentais e princípios democráticos. O meio ambiente aparece como uma outra agenda, mas agora totalmente conectada aos investimentos e à evolução da Inteligência Artificial e à construção de data centers. Soma-se aqui mais demanda ainda por participação social na governança global, em especial de populações diretamente afetadas por essas ações.

Se a governança digital global pretende ser legítima e eficaz, precisa recuperar a centralidade do multissetorialismo, enquanto mantém uma descentralidade em diálogo com os diferentes âmbitos em que se faz presente (Direitos Humanos, concorrência, direitos do consumidor, meio ambiente, educação, inovação, etc.). Porém, precisa de coordenação, garantindo que as decisões sobre o futuro das tecnologias não sejam monopolizadas por setores de governos ou corporações, mas sim construídas coletivamente, com transparência e participação. Mecanismos de accountability e inclusão nunca foram tão necessários, e já existem diversos espaços para isso. Basta vontade política e coordenação para que, somando as vozes de tantos espaços, possa-se finalmente ter uma governança digital de nível global mais justa com benefícios que atinjam a todos também no nível local.

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